SEMENTES DE CARDAMÔMO
Tens por companheiro o espanto
Que desde a luz primeira te fez escravo,
Dentre tantos outros, foi a ti que encabrestou
E sobre tua sorte escreveu: mistério.
Quando ainda te alçavam pelos frágeis pés
E açoitavam-te as carnes tenras e mornas,
E tua mãe ardia em dores
E teu pai arfava sobre os ladrilhos, escavando-os,
Nesse momento em que te apresentaram à vida
Ela te olhou, intrigada, e respirou profundamente.
Foi boa a noite e mal o dia,
Turvas as águas e límpido o céu.
Em meio a este estranho véu despertastes de teu sono.
O ínfimo momento é que te deu sentido
Para que sentisses o cheiro do cardamomo.
Águas-vivas navegavam, caravelas,
Sobre elas, justo elas, te erigiram a fortaleza.
De ar e fogo plantaram-te o destino
Para que incendiasse, tão logo visse a luz.
E fostes luz e fogo pairando nas águas,
De filamentos ácidos te construístes
Porque somente assim poderias desfraldar
A nebulosa bandeira do irrevelável.
Crescestes, então, pois um menino te esperava
E em seus ossos te plantastes.
Eras menino e já um homem, e menino,
Quando ao bom fadário invocastes.
E este, mudo e coxo, animal indomável,
Recusou-se à cela, ao cabresto, ao dono.
O único presente que te deixou
Foi a semente de cardamomo.
Tomastes por empréstimo a teimosia
E coragem, a que não teve valia.
Teu espólio reluziu sob a neblina
E nada dele brilhou ao sol, vez que era impalpável.
Só o inenarrável te traduziu
Com seus tentáculos longos e inalcançáveis
Porque teu nome foi gravado no pó
E quando o viram dizia: oculto.
Fostes homem entre as serpentes
E igualmente homem em meio aos ratos e escorpiões.
Te forjastes de seiva, escorbuto e peçonha
Para enfrentar tua sina, que era mais forte.
Por fim gritastes fundo ao vento norte
Querendo dele um alento
Um consolo, um bem maior que o abandono.
E ele em sussurros te revelou:
“Tens a semente de cardamomo”.
Ah, parente estreito do inconcebível,
Servo fiel das noites e do silêncio,
Por que te ocultas se só tens a ti nessa vastidão?
E por que são tão secretas as respostas
Que pela alma te vão, se as conheces,
Mas não as queres compreender?
Hás de viver muito e longo será teu caminho,
Entre os espinhos encontrarás abrigo,
No afável peito de teu inimigo
Verás o solo fecundo,
O esterco. O inquebrantável domo.
E quando o fado o assombrar
E todas as dívidas quiser cobrar
Estarás livre, porque livre és.
Porque plantastes sementes de cardamomo.