"PORQUE NARCISO ACHA FEIO O QUE NÃO É ESPELHO" (Caetano Veloso).

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

ABISSAL


[Imagem: Viajante sobre Mar de Nevoeiro - Caspar David Friedrich
Vídeo: Van Diemen's Land - U2]

Vou me jogar daquela ponte
E sem demora.
A ponte, precipitando-se, tenta coser;
Liga-me dos pés à cabeça
De modo que, ao me olharem de repente,
Nem percebam
Que sou um abismo.


Precipito-me para o alto e volto.
Gravito meus arcos, esteios, vigas.
Lastros que se vão alastrando
Abaixo do céu,
Acima da terra,
Além da consistência imutável.
Vou me jogar daquela ponte,
Dragar-me e desaparecer
Dentro de mim
Que sou um abismo.


Entre um barranco e outro,
Lá estou, pesado, mas flutuando.
Desexistindo, contudo, presente e fundo.
Somente a ponte me dá dimensões,
Dimensões de inexistir.
Vou me atirar daquela ponte
E sem demora.
Vou ser abismo completo
Sem fronteiras,
Impossível de ser atravessado.

[Dos: POEMAS RECÉM-NASCIDOS]



sexta-feira, 28 de outubro de 2011

BOUGAINVILLES


[Imagem: The little violinist sleeping - Antoine Auguste Ernest Hebert
Vídeo - Wake me up when september ends - Green Day

Ao vociferar explosivo do cacho de bougainvilles
A vidraça treme o carmim-solferino que a transpassa.
Vem colher-me aquele tiro de cor
Cuja espoleta é a própria luz irradiada – contra-muro,
E, como alvo fácil, fatigado,
Tombo sangrando invisivelmente.
Beleza violenta e certeira.

Listram-se persianas,
Escorrem tremeluzes derretidas
Alagando o carpete até os pés da moça.
E meus olhos arvorados, carcomidos pelas entrefrestas,
Refugiam-se, castrados, num ponto ou noutro
Onde seja possível sobreviverem ao que lhes resta.
Os bougainvilles disparam, frenéticos,
Projéteis teleguiados
Diretamente contra minhas retinas desprotegidas.

Como passa a manhã sobre os papéis!
Maços de cartas, datas amassadas, calendários.
(E eu, que anteontem era moço).
As teclas de um a nove ou de um a zero,
E todas as canetas em alinhamento marcial.
Como se agora, e só agora, tivesse me ocorrido
Que foi transe alucinógeno e nada mais.
(E eu, que anteontem).

Meus cabelos excessivamente curtos e brancos,
Meus ombros largos e fatigados,
Meus dentes de siso inclusos e decíduos
Meus dias devotados à paz insípida.
Meus pés dentro desses sapatos caros.

Tudo passa
Mesmo o cacho de bougainvilles.
Mesmo o cacho de bougainvilles que,
Antes ainda do dia de finados
Não será nada além da lembrança carmim-solferino
De toda a sua beleza.
Ou será, será, por ter sido exatamente aquilo:
A lembrança carmim-solferino
De toda a sua beleza.
[Dos: POEMAS RECÉM-NASCIDOS]



terça-feira, 18 de outubro de 2011

PETRA SUBIU À TORRE




[Imagem: Soap Bubbles - Jean-Baptiste Simeon Chardin
Vídeo: Torn - Natalie Imbruglia]

Petra subiu à torre para orar,
Para orar ao próprio reflexo
E, enquanto orava, reconheceu
A deidade que a habitava.

Petra subiu à torre para olhar,
Para olhar o próprio reflexo
E, tanto que olhasse, mais e mais
Ele se gastava
Contra o céu no horizonte em chamas.

Petra subiu à torre para ornar,
Para ornar o próprio reflexo
E, ornasse com fitas, laços ou flores,
Ainda assim lhe pareceria
Desoladoramente opaco,
Brutalmente liso e regular.


Petra subiu à torre para ocupar,
Para ocupar o próprio reflexo
E, no termo com que avançava,
Mormente se perdia em si – ou de si.
Um barco rumo ao nevoeiro,
Um pássaro contra o sol,
Um seixo atacado ao rio.


Petra subiu à torre para observar,
Para observar o próprio reflexo.
Observar-se, mutuamente, com o que não era.
Feito bolha de sabão
Que por meio enigmático pairasse
Diante dos olhos indecifráveis
Da mais indecifrável de todas as gárgulas
Da torre onde Petra subiu.

Petra subiu à torre.
Para aprender a voar.

[dos: POEMAS RECÉM-NASCIDOS]