"PORQUE NARCISO ACHA FEIO O QUE NÃO É ESPELHO" (Caetano Veloso).

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

BANQUETE PRIMITIVO


[Imagem: Table - Salvador Dalí
Vídeo: Path - Apocalyptica]

Afasta-me desses talheres
De comer imprecisões,
Desses talheres de prata
Que se usa para apartar
Da carne mal passada da realidade
Dos ossos da dissimulação.

Comer com as mãos
É minha profissão.
Roer o fêmur da fantasia
Até chegar ao tutano
E, ao sugá-lo, sentir
O gosto de dois opostos:
Ilusão e palpabilidade.

A mesa posta,
As porcelanas raras,
Os guardanapos de fino linho oriental,
O copo em que o vinho coagula,
Não servem para mim.
Não fui educado para tanto.

Na hora de minha fome
Saio à caça;
Com os ratos em baldes de lixo,
Com os gatos em ninhos de pombos,
Como os cães à porta de açougues,
Com as sombras à sua hora sinistra,
Com outros homens que, como eu,
Só se alimentam de escassez.

Os miúdos da vida,
Se moídos,
Me são banquetes à falta de dentes.
O real, em matéria deteriorada,
Atiça meu apetite. Salivo;
Sobre a inexperiência abatida
Debruço-me, genuíno.
Descivilizado, esfomeado.
Um mamífero egoísta
Que enterra juntas loucura e lucidez
Para apreciá-las depois de decompostas.

[Dos: POEMAS  (QUASE) RECÉM-NASCIDOS]

6 comentários:

Anônimo disse...

Massa! Ando preparando o meu estômago...

Forte abraço!

Neuzza Pinheiro disse...

um desconcerto, querido Agnaldo
Me lembrei do poema em linha reta de Pessoa, não que pareça, mas o espírito
"...e eu, tantas vezes reles...tantas vezes sujo...sujo..."
No mundo das aparências, "limpinho"
falsamente limpinho e perfumado,
a poesia, tenho certeza deve assumir esse caminho, mostrar o que se esconde sob tantas camadas
de verniz barato

bjs

Eliane Furtado disse...

Os árabes comem com a mão. Com pão. Tenho sangue árabe e adoro banquetes. Primitivos ou não. Olha eu nos meus devaneios.
Bom dia Poeta.

AGNALDO NO ESPELHO disse...

Lara,

Isso mesmo, prepare-se, prepare seu estômago para o banquete primitivo, onde nós, poetas famintos, cearemos.

Comeremos letras e conceitos até nos fartarmos.

Super beijo.

AGNALDO NO ESPELHO disse...

Neuzza querida,

Adoro poema em linha reta e, em idos distantes, fiz um monólogo com ele (mas isso não vem ao caso rsrsrs).

Concordo com você acerca do verniz. Tenho buscado uma poesia que conceituamente escave, que não paire somente na superfície.

Alguns se sentem agredidos, outros comungam. Mas minha poesia tem essa tendência provocativa (embora não necessariamente proposital) e, creio, nasça para confrontar minha cotidianidade, meu "pacato cidadão".

(Acho, mas não tenho certeza! rsrsrs).

Super beijo.

AGNALDO NO ESPELHO disse...

Eliane, Eliane,

Você sempre com referências deliciosas. Os povos orientais, do médio oriente, com suas tradições belíssimas que sobrevivem ao tempo.

É muito bonito. Significa a simplicidade de aproveitar a vida sem muitos mistérios.

No que diz respeito aos banquetes, os primitivos se prestam mais à poesia. Os demais, à vida e ao prazer. E devem ser aproveitados com quem importa.

Aproveite-os.

Super beijo.