"PORQUE NARCISO ACHA FEIO O QUE NÃO É ESPELHO" (Caetano Veloso).

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

CONTOS NOTURNOS


TRIUNFANTE!

(Pois bem... Tem de ser breve. Como algum angustiado que respira só até o peito. O ar não desce, portanto é urgente. A urgência é boa. Como uma vingança para dentro. Mesmo que desça somente até o peito)...

Descendo o elevador, somente dezoito andares. Como se a vida descesse até o fundo, muito mais rápida que o próprio peso de um elevador caindo; elevador que não tivesse cabo, não tivesse contrapeso, tivesse gente, somente gente dentro.

Antes de adentrá-lo ela olhou para dentro, como sempre fazia. Tinha medo de não o encontrar. Cair era o medo maior. Entrou. Apertou o último botão. Ofegava. Arfava mesmo. Quase não conseguia arrebanhar os poucos centímetros cúbicos do oxigênio de que precisava para continuar viva. As mãos manchadas de um rubro cintilante, ainda morno, pintando os botões iluminados daquela caixa. (As mãos vermelhas).

Parou dois andares abaixo. Alguém chamara o elevador. Quem quer que fosse, não entrou. Continuou a descida. O abdômen doía muito. Doía e pingava. Gotejava.

Olhou para baixo, para os próprios pés, a tempo de ver as pernas brancas listradas de vermelho. As unhas do pé direito com pequenas poças nos cantos encravados.

(O elevador descendo). Menos de dez andares, e o espelho olhando de volta. (Espelhos em elevador permitem à claustrofobia a fantasia de respirar, pensou). No espelho, ela. Lânguida, branca até. Pernas longas, finas, listradas e nuas. Nua dos pés à genitália. Nua a ponto de assustar uma empregada doméstica que subiria no oitavo andar. (Gritou e correu a infeliz). Uma velha senhora. Possivelmente ficara horrorizada com sua nudez tingida.

Apertou para que a porta se fechasse e cortasse o grito ao meio. O resto dele ficou oco, do lado de fora. E o elevador descia ainda, para algum lugar, lento e constante e cotidiano.

Correu as mãos úmidas pelos longos cabelos. Tão macios àquela hora da manhã. Ainda desfeitos... Puxados desde a nuca, doendo desde a raiz, desde os ossos do crânio.

De repente ouviu meias frases, pedaços que se esgueiravam para dentro entre um andar e outro. Restavam apenas cinco andares. (Sabia! Sabia, porque ali moravam crianças, e as crianças detinham o timbre correto da música que penetra elevadores). Apalpou no ventre o lábio rosado, recém-aberto, este lhe sorriu na altura do fígado, cuspindo seu vermelho inteior. Enfiou o dedo e depois outro. Hunnnf. Superficial? Levaria doze a quinze pontos. Nada além. Aliás, cicatrizes. (Mais uma. Menos uma). A última...

Quase lá. Quase no fundo. Quase de volta ao chão. Constrangeu-se, ainda de arma em punho. (Descarregada e feliz). Seis balas no peito. Seis tiros certeiros. (Não, um não!). Um cortou-lhe o dedo e arrancou a aliança que ela lhe dera. Cinco tiros no peito. Um não.

Então o elevador parou. Desceu devagar, distraída, e caminhou... (O térreo não estava. Inexistia). Não havia chão, só a vida, com o ventre rasgado à faca feito o seu. Caiu para ela... Dezoito andares, dezoito anos perdidos. Nua e lívida, mas triunfante.

(Conto escrito em Cuiabá-MT, em 05 de setembro de 2005, entre 23h10 e 23h53).

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