"PORQUE NARCISO ACHA FEIO O QUE NÃO É ESPELHO" (Caetano Veloso).

sábado, 3 de outubro de 2009

CONTOS NOTURNOS


AURORA

Aurora, esse era seu nome. Não bastasse ser o que era e ainda aquilo, carregar um nome eternamente amanhecendo. Justo ela, lunar, atrelada ancestralmente aos mistérios comuns à noite e às mulheres, padecia sob o signo, sob o destino inaceitável de amanhecer, de luzir, de fazer com que a existência brilhasse.

Caixa de supermercado. Dando números à fome, aos desejos e precisões alheios, ensacando-os sucessivamente na medida em que deixava de ser ela para que o dia a devorava, clareando demais.

Dois pacotes de arroz, três garrafas de vinagre, um quilo de sal, o troco da senhora apressada (a senhora teria cinquenta centavos? Nunca tinham). E assim. Encolhida no guichê, cabelos presos, menor do que realmente era.

Riam-se dela. Pelo nome, pela aparência longa e sem jeito dentro do uniforme. As colegas de check-out cochichavam nos vestiários e os clientes não resistiam a uma inspeção detida em seu crachá. Olhavam para o lado e apertavam os cantos da boca, tentando prender a surpresa, contudo ela sabia (deveras habituada), mesmo porque mal a olhavam na hora de pagar as compras e, tantas vezes, eles mesmos se apressavam em colocar os objetos nas sacolas para saírem esquivos e descontar a gargalhada antes mesmo de cruzarem a porta.

Aurora nada dizia. Apenas sentia noites conturbadas sacudirem-lhe a alma, e aqueles risos eram tormentas marinhas, adernando-lhe os barcos da estima e da beleza. Como se a cada cochicho, a cada gargalhada contida também lhe embaçassem o espelho e, por isso, ela se tornasse, além de andrógina, feia, manchada e digna de pena.

Ao fim do turno voltava a ser; o ocaso, o poente. Vencia à pé os sete quilômetros que a separavam de casa. (Necessidade). Necessidade de que a noite se assentasse sobre a pele de seu rosto, sobre seus braços, que falasse com ela sem se rir. (Necessidade de guardar uns trocados para os cabelos, para fazê-los, algum dia, de se admirar).

Tão logo amanhecia Aurora murchava. Esperavam-na os olhares, os não ditos, os gestos contidos. E mesmo os que não a tinham como destino, chama-os para si, porque no fundo, lá no fundo, era mais fácil suportar a certeza do que intentar contra dúvida. Resignada, um produto após o outro, um cliente após o outro, enfrentava-os como o fazia à luz. Até que...

Até que o novo gerente fez o que ninguém tivera coragem. Riu-se. Riu-se de verdade. Tentou se desculpar, bom que se diga, se retratar sem muito esforço. “É que...” Iniciou alguma explicação. “Eu sei, o nome é engraçado para mim, não é?” E foi embora, contrariada por ser tão solar, tão amanhecida, tão humilhantemente luzidia, sendo noturna como era.

Depois de caminhar as horas que lhe separavam do anoitecer e de ter coroado o rosto e a vergonha com o fel ácido das lágrimas, decidiu-se secretamente e fez.

Tarde da noite voltou ao supermercado. Outra. Núbia. Soltos por primeira vez, os cabelos coroavam-lhe a vontade irresignável. Volumosos e desconcertantes como não poderiam ser. E ao cruzar a porta fez cair o vestido. Lábios rubros e olhos firmes, seios miúdos e belos, curvas irreveladas. Caminhou até a sala do gerente. As luzes brancas lembravam uma lua artificial quando estendidas em véu leitoso sobre a pele desprotegida.

Foi devagar. Nua. Atravessou a porta para lhe dizer que não voltaria mais. Ele não respondeu. Admirou-a apenas. Silenciosamente e sem conseguir sorrir. As colegas do turno da noite também não riram nem cochicharam ao se depararem com o azeviche inteiro de sua tez e com a beleza secretamente descomposta.

Dormiu em paz.

A manhã seguinte foi negra, coberta de nuvens crespas, assim como negra, nigérrima, era sua pele e crespos os seus cabelos. Não veio o dia, o sol não despertou, não raiou a aurora, porque, naquele dia, Aurora desistiu de brilhar.

Nenhum comentário: