[Imagem: The Magic Circle - John Willian Watherhouse]
AS VARREDORAS DE RUA
Início de tarde em Criciúma. Sou enxotado de meu banco pela onda de poeira. Algo irritado olho para trás; tento descobrir a origem da turba alérgica à minha volta.
Dou-me com duas respostas de uma vez. A razão do barulho arrastado que ouvia havia tempo e o nascedouro do poeirão. Tudo a mesma coisa; ou melhor, tudo num mesmo lugar: a extremidade de duas vassouras de guaxuma. (Aos que desconhecem guaxuma desvendo o verbete da roça. Guaxuma é uma erva-daninha da qual as senhoras roceiras se valem, em maços amarrados com arame velho, para confeccionar suas vassouras e varrer quintais. (E isso lhes rende uns trocados de economia com vassouras industrializadas). Estranho é encontrar guaxuma nas vassouras urbanas).
Nem bem a irritação se fez, instantaneamente foi. Bastou percorrer com os olhos o trajeto, desde as ramas até a ponta dos cabos. Firme neles duas varredouras de rua. Donas de meia idade, robustas, lépidas; com a pressa de um calçadão inteiro. Zapt, zapt, zapt e um monte de folhas, pontas de cigarros. Ora uma, ora outra, juntavam o produto do trabalho e o despejavam no tambor alaranjado.
Aliás, alaranjadas também eram suas calças; inimaginável combinação de roupa e adereço.
Olhei e senti a enxurrada. A maré alta da lembrança me engolindo.
Transportado 20, 30 anos para trás – pela máquina irreconciliável da memória – vi minha mãe. Um quintal que era o mundo inteiro de folhas de mangueiras, abacateiros, esterco de galinhas... E ela prestes a desbravá-lo com sua espada de guaxuma. Rosto alaranjado pelo sol, pelo pouco, por meus olhos contemplativos. Companheiros.
Corpo alaranjado, alma alaranjada. Um amanhecer constante de coragem e uma perene tarde, de cansaço e resistência.
Passaram as varredoras de rua, passou a poeira. Só não passou a imagem de minha mãe, alaranjada. Alaranjada, não! Dourada. Como uma santa ou uma feiticeira, capaz de operar milagres com sua vassoura de guaxuma.
O quintal também não passou. Está limpo e intacto; e eu ainda estou menino, imerso na nuvem vermelha. Na beleza empoeirada, secreta e pessoal, que jamais será varrida.
8 comentários:
Nossa, que lindo seu texto!
Como gosto da cor alaranjada, de todo o simbolismo dela.
Beijo, amigo.
você, Agnaldo, buscando no espelho
a imagem alaranjada de sua mãe, mãe-avatar, mãe feiticeira com sua vassoura mágica de capim, como numa dança. Li uma vez que a demanda de amor se instala no segurar a criança, segurar é uma forma de amar. E trazer a imagem assim, manter acesa, fazer com que a gente veja tão claro, é um poder, as mães voando, lindas e poderosas, com suas vassouras de guaxuma. Fico mesmo muito emocionada.
grande beijo!
Lara,
Também gosto muito da cor, mas nesse caso ela me pegou de jeito...
Atravessou como um raio de lembrança e me levou para longe.
É assim mesmo, às vezes somos transportados para o passado e... Bom, temos de aproveitar.
Super beijo.
Neuzza querida,
Primeiro as mães nos seguram, depois seguramos elas.
Vocês mulheres têm o sagrado privilégio de ampliar o ciclo, originando novas vidas.
Nós homens vivemos maternidades frustradas e acabamos por canalizar esse energia estagnada para outras coisas. Lembranças, por exemplo.
Super beijo.
ah...ali, à direita, você vem trazendo outros tesouros submersos,
esse camafeu, as pérolas...
Ô, maravilha!
beijo grande
Boa Noite Agnaldo!
Muito bom você ter percebido as varredoras de rua(pela poeira que faziam)normalmente são invíveis aos olhares dos demais humanos....
Muito embora tenham te empoeirado, trouxeram também lindas lembranças...
Ótimo seria se não precisássemos do trabalho delas por sermos tão educados, esta tarefa seria desnecessária,e elas ( doce utopia) poderiam plantar flores....
Tenha uma linda noite.
Neuzza querida,
Pois é, as pérolas ficam escondidinhas, assim como o camafeu... Têm de ser caçadas para serem descobertos.
Que bom que você as encontrou... E que tenha gostado.
Super beijo.
Vera,
Tenho o maior respeito por essas pessoas, porque elas fazem com que nossas vidas sejam um pouco mais claras, mais limpas... E executam um trabalho digno, maravilhoso, que muitos de nós não nos proporíamos a fazer...
Estava tão absorto na escrita que nem as havia percebido antes. Foi um susto, um susto bom e empoeirado.
E elas me renderam boas lembranças e uma crônica. Saí ganhando. Empeirado, mas ganhando.
Super beijo.
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