O DEUS DO MOFO
Pêlos nas reentrâncias do móvel. Entre o braço e o assento do sofá se haviam juntado resíduos imemoriais. O homem descobriu por acaso aquele estranho ninho - por acaso - quando enfiou sua mão lenta e indiscretamente pelas intimidades do móvel. Vulvazinha de tecido, cabeludinha, repleta de antiguidade como ele mesmo.
Já o vinham debelando os sons do dia; ensaiava intimamente uma reação qualquer quando foi vencido pelo inusitado e estacou. Recolheu-se deveras quieto observando a criação. (Deus se escondia nas grotas).
Correram séculos, segundos talvez, até que se deu conta de que aquilo representava a verdade em sua mais sublime face. Refletiu até encontrar palavras no meio do silêncio. Poliu-as com cuidado antes de depositá-las onde haviam dormido, porque não queria que despertassem empoeiradas; e as palavras, quando acordaram, sozinhas, eram curtas e simples.
A vida tratara de arranjar meios para esconder os cabelos caídos, os fios do tecido roto que vestira desde a juventude e a pele que, por vontade própria, decidira se desgrudar do corpo pela abrasão dos anos.
Que conclusão, afinal, acudira-o naqueles bravos instantes? Qual misteriosa verdade lhe fora posta diante dos olhos? Esperou um pouco até ter força para dizê-la, mas a disse, e ela era assim:
“A memória é feita de resíduos, de fios, cascas e cabelos. Tão orgânicos e férteis se vão tornando que, pela ação do mofo e da umidade, alguns fedem. Outros, graças ao Deus das coisas pequenas, resistem à decomposição, brotam a partir desta e florescem vivos. Belos, tênues e quebradiços, feito cogumelos alaranjados enfeitando o tronco que apodrece. É assim a memória: um tronco se perdendo entre as árvores do presente e os brotos do futuro; mas resistindo bravamente, porque sem esterco o novo tempo não tem forças para nascer”.
Foi o que disse a si mesmo como uma oração...
(Depois juntou os pêlos das intimidades do móvel e a deixou depiladinha, para que o bom Deus das cavidades a pudesse novamente emprenhar).
Pêlos nas reentrâncias do móvel. Entre o braço e o assento do sofá se haviam juntado resíduos imemoriais. O homem descobriu por acaso aquele estranho ninho - por acaso - quando enfiou sua mão lenta e indiscretamente pelas intimidades do móvel. Vulvazinha de tecido, cabeludinha, repleta de antiguidade como ele mesmo.
Já o vinham debelando os sons do dia; ensaiava intimamente uma reação qualquer quando foi vencido pelo inusitado e estacou. Recolheu-se deveras quieto observando a criação. (Deus se escondia nas grotas).
Correram séculos, segundos talvez, até que se deu conta de que aquilo representava a verdade em sua mais sublime face. Refletiu até encontrar palavras no meio do silêncio. Poliu-as com cuidado antes de depositá-las onde haviam dormido, porque não queria que despertassem empoeiradas; e as palavras, quando acordaram, sozinhas, eram curtas e simples.
A vida tratara de arranjar meios para esconder os cabelos caídos, os fios do tecido roto que vestira desde a juventude e a pele que, por vontade própria, decidira se desgrudar do corpo pela abrasão dos anos.
Que conclusão, afinal, acudira-o naqueles bravos instantes? Qual misteriosa verdade lhe fora posta diante dos olhos? Esperou um pouco até ter força para dizê-la, mas a disse, e ela era assim:
“A memória é feita de resíduos, de fios, cascas e cabelos. Tão orgânicos e férteis se vão tornando que, pela ação do mofo e da umidade, alguns fedem. Outros, graças ao Deus das coisas pequenas, resistem à decomposição, brotam a partir desta e florescem vivos. Belos, tênues e quebradiços, feito cogumelos alaranjados enfeitando o tronco que apodrece. É assim a memória: um tronco se perdendo entre as árvores do presente e os brotos do futuro; mas resistindo bravamente, porque sem esterco o novo tempo não tem forças para nascer”.
Foi o que disse a si mesmo como uma oração...
(Depois juntou os pêlos das intimidades do móvel e a deixou depiladinha, para que o bom Deus das cavidades a pudesse novamente emprenhar).
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