"PORQUE NARCISO ACHA FEIO O QUE NÃO É ESPELHO" (Caetano Veloso).

terça-feira, 27 de julho de 2010

CONTOS NOTURNOS


O CINZEIRO VERMELHO

Acordou cedinho para pôr-lhe o café à mesa. Tão logo o fez foi à janela acender um. Ele rosnou. Rosnou a música de todos os dias. Gutural e entre os dentes. “Vício miserável!”

Ela baforava para fora. a fumaça levava o espírito a lugares desconhecidos. E enquanto baforava pensava no dia; embora não precisasse. Seria como ontem, como anteontem e ainda o seria amanhã.

Voltou-se para dentro quando o ouviu queixar-se de alguma coisa. Queixava-se sempre, aliás, para cortar-lhe ao meio o cigarro. Ela saiu da janela para acudir. Antes, no entanto, deitou fora o companheiro. Fez o que pôde, automaticamente, porque as queixas não demandavam empenho, mas presença. Só presença. Servidão.

Comeu que se fartou. Pediu que os ovos , no dia seguinte, estivessem mais assim ou mais assado e ela assentiu, sem uma palavra. Foi levá-lo à porta; esperança de um beijo de bom dia. Mas quê! Seus lábios postos esperaram em vão. Ele se recusava, como fazia questão de repetir, a beijar um cinzeiro.

Fechou a porta atrás de si e foi cuidar. Cuidar para que tudo brilhasse. Estivesse a seu gosto ao fim do dia.

Lavou-lhe à mão os jeans sujos de graxa, areou o bule e a leiteira, secou a louça e a guardou com cuidado para que nada estivesse fora de seu devido lugar. A tarde amainou com as roupas no varal e a casa perfumada. Vários cigarros depois.

Não leu a revista que ensaiara, tampouco assistiu à novela da tarde, sua favorita. Apenas fez. Fez como fazia todos os dias. Fez como o faria no dia seguinte.

Depois de encaminhar a janta correu para juntar as poucas moedas que lhe restavam. Com sorte lhe reporiam o cigarro, quase no fim. Rumou à venda da esquina, muito apressada, antes que ele chegasse.

Quando tornou não havia nada. As roupas do varal, nem panelas sobre o fogão. Nem fogão. Nem varal. A casa, tampouco. Ele também não estava...

Ela também não estava!

Voltou radiante à venda e trocou os cigarros por um batom. Passou-o ali mesmo, sem pressa ou constrangimento; depois seguiu lentamente até desaparecer nas cinzas da noite.

...Com um sorriso brilhante brotando dos lábios; cinzeiro carnudo e vermelho.

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