[Imagem: Starry night over the Rhone - Vicent Van Gogh
Vídeo: Unther the bridge - Red Hot Chili Peppers]
Desço com os olhos os metros restantes da Avenida Ivo Silveira; sem demora transpasso o muro de flandres que a protege e alcanço a ponte. A velha Hercílio Luz. Talvez esteja descalço, por isso a sensação de tábuas, metal e ferrugem.
É noite como quase sempre. Apresso-me até o ponto onde a primeira coluna metálica ascende; e a escalo. Subindo, e sem ofegar, como seria de se esperar em uma escalada ocular. No topo a luz vermelha. O rubi que eu desejava. De um lado a ilha pulula lâmpadas, carros, silhuetas de concretos piscando olhos amarelados. No oposto, minha varanda acesa e nela o vulto com sua camiseta branca.
Fui até lá para enxergar do alto as sutilezas que se amoitam na claridade. O dia costuma lhes ser fatal. Somente as asas do grande corvídeo, que emplumam ao poente fazem, a exemplo de uma rega, tais clandestinidades florescerem.
Não fosse pela ignorância estaria condenado à burocracia das mediocridades. A enxergar no raso e na superfície. Mas desconhecer me salva. Restitui a inescrupulosa aura infantil. A que não teme, porque não sabe.
Eu dizia do que experimentava ao alto da ponte. E retomo. De lá, do cume, me olho na varanda metido na roupa branca e percebo que, ao olhar, cruzo com o facho dos olhos do outro. Esse eu da varanda, que me dispara de volta dardos em sua mirada. Entreolhamo-nos como estranhos íntimos, e não desviamos. Por instantes permanecemos enamorados, cobiçando segredos um do outro.
Ele descobre que sou amante da noite. Isso no relance inicial. Mais, mais, descobre que a traio com a baía. Eu o percebo devoto dos barulhos ralos; que os assiste em seus leitos até que estejam muito fracos para resistir ao sono.
No fim, já seduzido por seu destemor de alturas e pelo belo rubi com que me quer presentear, peço que desça para me ver de perto. Não responde. Nota, por certo, o vazio devastador que nos separa. E em isso constatando, põe de volta em seu cetro o mimo escarlate que me traria e num voo elegante e antigo, mergulha. Bate no plaino d’água e desaparece.
Formam-se anelos líquidos em redor do impacto; eu contemplo. Abismado. Enquanto meus olhos se afogam na baía, coroados pelas auréolas das luzes que reverbera.
E a noite segue. E a água se assenta. E a calma nos traga. Meu olhar, absorvido, repousa nalgum ponto no fundo desse mar.
A ponte, se pudesse, teria se atirado à esperança do resgate, tentando trazê-lo à tona. Como não pode se limita a soluçar. Soluça ferro. A ferrugem cai feito orvalho acobreado.
Eu, de onde a vejo, agradeço. Agradeço pela imobilidade, por deixar meus olhos descansarem.
[É certo que estava descalço, pois, sequer os chinelos boiam].
[Das: CRÔNICAS NOTURNAS]
6 comentários:
A Ponte Hercílio Luz...ainda me lembro bem daquela reportagem. Foi a primeira vez que fui para Santa.
Ela estava em reforma. E eu decidi fazer a matéria. Foi JNacional.
Que recordação.
Nem consegui ler tudo, Poeta. Dei um mergulho profundo no passado.
Bom final de semana. Meu abraço apertado e o super beijo de volta.
Ah, a ponte Hercílio Luz...
Pois foi há 35 anos que fiz, pela primeira vez, a sua travessia, e ela está viva e acordada na minha memória.
Seu texto, meu querido Agnaldo, com início e meio espetaculares, prendeu-me, ainda mais, pelo seu final, com esses chinelos boiando...
Maravilhoso!
Bravo!
Abraço bem apertado...
Olá!
Linda a homenagem para a ponte Hercílio Luz e ouvindo RH Chili Peppers é bom demais.....
Você está morando num lugar ESXPECCCCIAL...
Bjs do sul,mais ao sul e com algumas pontes bonitas a nossa sobre o Guaíba está emperrando e precisa de REFORMAS.
Bjs , bom feriado no paraíso.
Eliane "viajeira"...
A Ponte ainda está em reforma. Pelo que soube já está assim há mais de dez anos, o que me entristece. Por outro lado - esse que alimenta o meu egoísmo - a tenho só para mim. Não divido com carros, motos, barulhos etc.
Mas, olha, por falta de Ponte Hercílio Luz para atravessar, venha atravessar seus olhos por outras belezas. Não se embargue, venha matar a saudade.
Super beijo.
Zélia,
Já está na hora de voltar, não acha? Faz muito tempo que essa Ponte sente sua falta... Verá que a ela mudou pouco, mas a Ilha está cada vez mais linda e poética. Inspiradora, diria...
Quando quiser motivos diferentes para a sua poesia, este é um bom lugar para buscá-los...
Super beijo.
Vera, Vera, Vera,
Nosso Sul tem lá seus encantos, não é mesmo?
Eu me embriago diariamente, dividindo meus olhos entre as baías sul e norte, tendo a ilha inteira adiante de mim e a ponte começando sob meus pés. Não posso reclamar, por isso, de vez em quando, me desmancho nesses carinhos. A paisagem merece...
E RHC Peppers realmente embalou bem a crônica, concordo plenamente. Além do fato de que eu adoro essa música (embora um pouco triste).
Ótimo domingo e Super beijo.
Postar um comentário