Ter uma gaiola de ouro
Para um canário raro
Cujo canto alegraria toda uma aldeia.
A gaiola cerrada
Coberta por encarnado tecido
E o canário dentro dela
Sem ouvintes, sem ouvidos
Para beberem de seu delicado bico
Uma nota sequer.
***
Muito ingenuamente tateio
O veludo carmim de minhas dúvidas.
Como se tudo soubesse e tudo ignorasse por completo
No momento seguinte da palavra.
Acossado, suspeito e já admitindo a culpa.
Um gato ladino, um felino perfeito
Auscultando os movimentos
Tristes ao fundo da gaiola,
E ronronando seu desejo desde o estômago,
Faminto de muito mais,
De muito além da carne,
De muito além da beleza,
Faminto do canto e da tristeza aprisionados do canário.
***
Os versos que escondo...
***
São douradas as barras
Que sustentam a gaiola e a tornam gaiola?
É, de fato, um canário raro
Ou somente uma ave canora de terceira grandeza
No firmamento dos pássaros perfeitos,
Essa ave?
Há um felino ladino pronto a saciar sua fome visceral
Ou é apenas fome passageira
De um bichano velho
E sem dentes?
É carmim o tecido
São de veludo minhas dúvidas
Ou ambos são farrapos,
Fantasias, croquis,
Rabiscos e ilusões?
***
Os versos que escondo...
***
Por amor.
Cruel, egoísta e profundamente covarde.
Pavor e frenesi,
Desespero, apego, dúvida e desconfiança
De que não haja canário
De que não seja raro
De que não haja gaiola
De que não seja dourada
De que não haja tecido
De que não seja carmim
De que não sejam nada
Os versos que escondo...
***
Desde o alçapão que o prendeu
Até a mão que o alimentou
E os grãos dos quais comeu
Com vontade e servidão,
Tudo pode ter sido
Imaginação fugaz...
Desde o gato,
Desde o tecido,
Tudo o que foi construído
Pode não ter sido,
Jamais...
***
Os versos que escondo...
***
O preço da redenção é a assunção da culpa
Para o pecado planejado e inevitável...
Os versos que escondo,
Os escondo,
Como a um pássaro encantado
Para o qual não tenho olhos,
Para o qual não tenho ouvidos,
Só sentimentos em chamas
Prestes a darem vazão
A um crime delicado.
Com a mão – e só com ela,
Sem olhar – tateando,
Desfraldo o rubro tecido,
Abro a fechadura dourada
E me detenho no momento fatal
Como um gato prestes a saltar...
Estaco, titubeante e fraco,
Ignorando por completo
O irrevogável destino da mão:
Sem ter certeza se o solto
Ou se, por suave compaixão,
Rompo seu fino pescoço,
Silencio de vez
Seu canto
Sem ouvinte...
***
[Dos: POEMAS DO ESTOQUE]
[Um adendo (coisa que normalmente me recuso a fazer): Escrito originalmente par ao livro "A Minha Idade de Cristo - Poemas crucificados e poemas ressurretos". Resisti a publicá-lo por muito tempo. Hoje ele me pegou de jeito e não houve como me esquivar. Ele mandou, eu obedeci (como sempre o faço, aliás) Creio que a concessão se deve ao fato de seu sentido ter esmaecido com a criação de >NO ESPELHO<, mas nunca saberei ao certo, por isso cedi. E se posso pedir algo, me permitam, peço: ouçam a canção. Ouçam-na.]
6 comentários:
Agnaldo, meu querido amigo, grande poeta
Acho impossível que um poema consiga ser mais lindo do que este!
Li, reli e vou ficar aqui a ler, porque cada verso me impressionou demais...
Ah, essa gaiola, esse passarinho, esse gato, cada um com suas misteriosas características...
Ah, o poeta, ele mesmo gaiola, passarinho, gato...
Demais, meu querido!
Falta-me um jeito bastante bom, para dizer o que penso.
Abraço bem apertado, Agnaldo!
Poemas do estoque. Estoque de ouro.
bom dia Poeta Agnaldo. O poema é lindo, mas a imagem da gaiola me inibe. Tenho claustro rs. Amo ir e vir. Adoro a liberdade.
Boa semana.
Zélia,
Como sempre te digo, fique o quanto quiser. Se aproprie, recrie os significados... O importante é sentir sua sombra, o cheiro de suas palavras e a delicadeza de seus passos suaves.
Venha e fique.
Super beijo.
Eliane querida,
Olha, a gaiola é peculiar a todos nós, se é que isso é possível.
Alguns a tem para fora, outros para dentro. Os pássaros é que são importantes. Especialmente os que estão livres.
Super beijo.
crime é aprisionar versos assim, Agnaldo.
Sinto que trazendo o poema à frente do espelho, vc resgatou
um pouco mais de si.
Davis Gilmour nessa canção, é um pássaro raro; é de uma nostalgia, Agnaldo, ouvir as frases do cello,
as vozes...por favor, vc pode postar esse vídeo na pg do orkut?
Eu sou neander e tal, não sei o básico. Beijos admirados
Neuzza querida,
Ah, Neuzza... Os versos que escondo... (Não escondo de todo mundo, graças a Deus)...
Super beijo.
P.S. Vou tentar baixar o vídeo no orkut, mas também não sou dos melhores em "orkutês".
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