[Imagem: Woman with a candle - Godfried Schalken
Vídeo: Haja o que houver - Madredeus]
Digamos que tivesse de deixar um bilhete afixado no espelho do banheiro, explicando minha ausência no restante de sono da manhã, esse bilhetinho seria assim:
“Eu não suportei permanecer ao seu lado. Acordei tomado pelo arrebatamento diário e decidi que não ficaria ali. Mas saiba, não foi uma decisão rápida, fútil ou fácil; rolei antes, para lá e para cá. Chamei pelo sono, fiei um terço, contei um curral inteiro de ovelhas, cheguei a cogitar algum “tarja preta”. Fui vencido. Não suportei e, envergonhado, confesso.
Saí pé ante pé, macio como um gato que estivesse à espreita do canário, e justamente por isso, por me sentir à espreita, foi que me atirei para fora da cama, abri a porta e te deixei ficar.
Não se zangue comigo, porque sou um fraco. Um completo fraco; homem que não suporta.
Ei, ei, espere! Eu ainda não terminei. Creio que você mereça alguma explicação. Pois que seja:
Eu não suportei estar privado de seus olhos, mesmo que por instantes. Juntem-se o céu e o mar, façam complôs com todos os azuis da terra, ainda assim não serão páreo para esses faróis de safiras que você ostenta dentro das órbitas. Esses faróis que me conduzem ao núcleo da paz, que também deve ser azul, em vez de branca.
Eu não suportei a distância imposta pelo seu descanso. Ciúmes de seus sonhos, ciúmes dos lençóis, inveja mortal do travesseiro. Desejo de sê-los. Pluma, algodão, delírios inéditos. Tanto, tanto, tanto desejei poder me transformar, mas, não. Carne, osso, erupção é o que sou, e continuo.
Feito um gato, como já disse, te espreitei. Queria ronronar, lamber, esfregar-me na sua pele; e sua mão? Ah, o arrepio. Um gato arrepiado desde a calda até as orelhas eu seria, e feliz. Feliz.
Houve momento em que tive medo mortal. Pavor de não ser capaz de conter pesadelos ou de, por descuido, fazer algum barulho que pudesse interromper a beleza pousada em seu rosto. Essa borboleta... Encontrou a açucena rósea de seus lábios e foi beber. E era tudo tão pacífico, perene e restaurador, que tive medo de quebrar.
Entende agora por quê te deixei dormindo e vim me prostrar aqui, do lado de fora do quarto? Para que você descanse por alguns segundos do meu amor arrebatado; para que minha devoção não comprometa as paisagens paradisíacas por onde corre dentro de seu sono, e para que meu instinto de abraçar, beijar e proteger não se torne o sino da manhã.
Durma, então, que permanecerei aqui. Sou o seu lanceiro. Guardo a entrada de seu palácio. Sem elmo, sem armadura. Armado com a lança de fogo da paixão.
Mas, veja, não durma tanto mais, porque a determinação que me acometeu ao acordar, mal suporta o término dessas linhas. E, quer saber? Seu tempo acabou! Acorde! Que eu já não aguento esses minutos de saudade”.
[O bilhete não foi necessário. Tampouco precisei explicar ausência alguma. Eu estava lá quando acordou; olhando. Admirado como todos os dias].
10 comentários:
Ah, que lindo, lindo!!!
=)
Lindo poema! Uma carta de amor linda!
Ah, Madredeus... amo essa "haja o que houver".
Beijos.
Boa Tarde Agnaldo
LINDO, simplesmente LINDO...
Pura emoção.
Bjs de domingo com gosto de vestido novo e sorvete.
comovente, poeta. Nestes tempos tão magros de amor arrebatado, é reconfortante te ler, e com essa voltagem. Grata
Cancerianos são assim, apaixonados
mais do que ninguém.
Ontem ouvi tanto o Madredeus. É indescritível, é assustador.
um beijo admirado
Lara,
Obrigado. O amor de vez em quando transborda a taça e sai...
Super beijo.
Cecile,
Também amo essa música; e me pareceu que foi feita para a crônica em questão. Pareceu, não, tive certeza... É de uma devoção sem par...
Super beijo.
Vera,
Enfim o sol nos veio visitar e parece que a permancência vai ser longa.
E você de vestido novo, preparada para o verão e já com sorvetes em punho...
Segunda-feira linda se abrindo.
Super beijo.
Neuzza querida,
Nós, os cancerianos, derramados como a água que nos rege. Vamos lavando tudo o que amamos, lavando com o magma de nossos sentimentos intensos.
E depois disso ainda me lembro de Madredeus, como se a música tivesse sido feita naquele momento, e de propósito para se adequar ao que eu desejava... "Haja o que houver estou aqui!".
E foi, fácil, fácil...
Super beijo.
Lindo, lindo, lindo. Comovente. apaixonante.
Eliane,
Que bom que você tenha gostado. Acertei então em convidá-la para ler, não foi?
Super beijo.
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