"PORQUE NARCISO ACHA FEIO O QUE NÃO É ESPELHO" (Caetano Veloso).

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

POEMAS RECÉM-NASCIDOS


CONTEMPLAÇÃO

Quando a beleza devassa as sombras
E põe fogo nos azulejos da casa,
Quando o vento se enrola nos pés de mesa
E canta nas frestas músicas antigas,
Quando o silêncio se curva para ouvir
E dar voz aos grilos e às cigarras,
Quando o espírito crepita,
Fagulhando cinzas, brasas, entre o passado e futuro.
É nessa hora que me engasgo,
Saio tateando o impalpável,
E todos os sentidos moram num só lugar:
Os meus dedos.

Quando a palavra exata desaparece,
Mesmo se tendo fantasiado de infinita,
Quando as fechaduras portam olhos
E os espelhos descansam da carga de refletir.
Quando a poeira de sobre as coisas toma forma
E aspecto de outra matéria que não poeira.
Quando o eterno dorme nas teias das aranhas
E nelas se balança, prestes a cair.
É nessa hora que me entrego,
Deixo que me comam as horas,
E elas me vão devorando a partir do centro
(E dos ossos).

Quando a maré se levanta, se atira contra o quebra-mar
E sangra espumas brancas entre veias pétreas,
Quando a força das insignificâncias ganha corpo
E explode brotos nas frestas das calçadas.
Quando o visgo de existir cobre a própria existência
E a esverdeia inteira, umedecendo-a sem a manchar.
Quando verdade e certeza deixam de importar
E a melancolia espalha unguento nos batentes das portas.
É nessa hora que me embargo,
Esfrego o meu cio nos objetos e na vida. Descanso.
E todas as necessidades tornam-se uma:
Contemplar.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

POEMAS TARDIOS


DEPILAÇÃO DOS GRANDES LÁBIOS

Arreganha – aranha!
O manto, negro
Véu de sua sanha,
Seus dentes,
Seus lábios latentes,
Arreganha,
Sua boca ardente
Afiado cílio
Que arranha.

Quando lambe, a lâmina,
Docemente -
Deslizando, secreta,
A carne proeminente,
- Essa montanha,
Arreganha – aranha!
Assanha a semente
Para que nela cresça
A língua,
Para que dessa
Íngua
Brotem licores
Quentes.

Estranha simetria
Essa sua cova esguia,
Cova de harpia – aranha!
Arreganha
A orquídea híbrida,
A rubra papoula.
Os tufos de pêlos
Juntam-se, novelos,
Ceifados – aranha!
A herança crioula
Revela-se moura
Onde a unha
É estranha.

Arreganha – aranha!
Beba do que lhe banha.
Lisa face rósea
Lisa carne teácea,
Desnudada barganha.
A navalha cega
Se rende
Se entrega
A sua façanha.
Arreganha – aranha!
A vulva-cela.
Revele de dentro dela
O seu poder,
A sua manha...

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

CRÔNICA DO DIA


PEIXE PEQUENO

Hoje meu pai me perguntou se todos os peixes do mar são salgados como a sardinha.

Falávamos ao telefone, descontraídos e distantes; eu olhando a lua estendida na vastidão de água, e ele, por sua vez, preocupado com possíveis tempestades. Eu dizendo das poucas pessoas que caminhavam pela praia naquele momento e ele me narrando o calor infernal que lhe cozinhara o dia.

Disse-lhe que por aqui não faz calor, que venta muito e as janelas precisam ficar fechadas, assim como as portas, assim como o peito. Caso contrário caem os vasos, rasgam-se as cortinas e a saudade escapa, toma conta de tudo. (A frase não foi isso tudo, mas teve esse significado em minhas entrelinhas).

Do outro lado ele sorria, profundamente admirado com as viagens que fiz e, certamente, com as grandes distâncias que separam o sítio - a cidadezinha parada no tempo - do vasto mundo que me atribui. Orgulho silencioso de quem tem um filho que deixou de ser menino e assumiu os riscos de ir além (ou aquém).

(Verdade é que o tempo nos distancia do início sem, contudo, oferecer instrumento para aferir evoluções ou desvios de rota. Razão pela qual é difícil dizer se o homem piorou o menino ou se o menino melhorou o homem... Vencido pela dúvida, melhor mesmo foi não contraditar o silêncio admirado de meu pai).

Foi assim, meio sem nada, meio sem jeito, a ligação ruim e a distância pondo ruído em nosso assunto - entre uma pausa e outra - que ele me perguntou se todos os peixes do mar são salgados feito a sardinha.

E eu, corriqueiramente e sem dar volume ao fato respondi que não. Ele se corrigiu, algo envergonhado. (Lembrou-se das sardinhas frescas que comprava; elas não eram salgadas). Riu constrangido e seguiu adiante, como sempre faz.

Pensei imediatamente na quantidade de coisas que ele me ensinou ao longo da vida... É, pai, você não viu metade do que eu vi, e eu não sei um décimo do que você sabe.

Façamos o seguinte: quando eu chegar à sua idade, com filhos criados, netos e uma família da qual me orgulhar a gente volta a falar de peixe. Até lá, se importe com isso não...

(No final das contas o mar é salgado e grande. Como o tempo, a distância e a saudade. O resto é peixe pequeno)...