"PORQUE NARCISO ACHA FEIO O QUE NÃO É ESPELHO" (Caetano Veloso).

quinta-feira, 24 de março de 2011

AS LUVAS


 [Imagem: Pé e mão - Eivar Moya 
Vídeo:  Send me an angel - Scorpions]

Recebo, consternado, de tua mão
A marca da minha própria.
Algo que me tiveste levado
E só então trouxeste de volta,
Tornaste a mim a linha da vida
Ou outra impressão qualquer
Para que eu pudesse me recompor,
Ser inteiro, talvez.

Agora, vê,
Quanto tempo estive olhando para mãos lisas,
Quantas vezes as esfreguei contra rochas para marcá-las,
Quanta falta me fez a linha do destino
E a linha da vida
E a linha do coração.
Tanto desencanto pela pura inexistência
De identidade.

E me constrange como se estivesse ainda nu
E sempre tivesse estado nu.

Constrange-me por não passar de uma luva.
Os sinais que ora enxergo
Parecem de uma falsidade irremediável
E titubeio
Entre permanecer com as mãos lisas, a identidade inexpugnável,
Ou aceitar tal pele sobreposta à minha e desejar
Desejar ardentemente que ela me revele
O irrevelável.

Recebo, consternado, de tua mão
A marca da minha própria.
E nada do que vejo sou capaz de reconhecer
Assim como, se levasse ao rosto as palmas recém-marcadas
Elas também não o poderiam reconhecer.
De que adianta, então, ter de volta as linhas
E os calos e os vincos e as cicatrizes?
De que adiantam habilidades táteis
Quando o que se quer é a luz?

[Dos: POEMAS RECÉM-NASCIDOS]



NOTA: Tenho o coração confortado pelas pessoas que não deixaram de vir à minha casa enquanto eu mesmo estive fora... Vocês cuidaram dela para mim. Tenho vindo pouco, mas sinto o cheiro de cada um que passa por aqui. É festa sensorial e alento para meus dias velozes. Obrigado!