"PORQUE NARCISO ACHA FEIO O QUE NÃO É ESPELHO" (Caetano Veloso).

domingo, 4 de março de 2012

LIBERTAS



[Imagem: Orpheus - Franz von Stuck
Vídeo: Poema - Ney Matogrosso]

Mesmo as pedras, que de tão imóveis lacrimejam musgo -
Lamentos pela liberdade que não têm -
Sabem e pensam e aspiram asas;
E se pudessem seriam igualmente aladas, ainda que não se elevassem.

Uma pedra de beira-mar é capaz de contar todo o oceano
Em um único verso. Um verso de vai-e-vem.
Uma pedra de penhasco contaria o vento, em assovios.

Desde a primeira idade, quando sente o assombro de si, por existir,
O ser humano realiza asas, espaço e desprendimento.
Todo homem nasce pássaro, nasce céu, só depois é que encarnece.
A gravidade se incumbe do voo; as penas, por penas se dão.

Faculdade amorfa, ânima cujo tênue esqueleto a ninguém se molda.
Pomba invisível arrulhando sobre as cabeças, cagando esperanças.

Liberdade.

Todo homem nasce livre e nu - envolto em sangue.
Todo o resto o engaiola.

[Dos: POEMAS RECÉM-NASCIDOS]


quinta-feira, 1 de março de 2012

UM HOMEM TODO



[Imagem: The berry picker - Andrew Wyeth
Vídeo: Lonely day - System of Down]

Um homem, ao acordar, está completamente só.
Realizar o mundo em torno do homem que acaba de acordar
É planejar esvaziamentos para o nada.


Um homem, ao acordar, é o universo sendo pensado.


Um homem, ao se curvar, deserda os próprios tendões.
Interpretar o tino do homem curvado sobre a espinha ou os joelhos
Se assemelha a mediar diálogos entre abismos e quasares.

Um homem, ao se curvar, implode os genes de sua descendência.

Um homem, ao cantar, no fim de uma tarde que esteve quente,
Declara-se irremediavelmente perdido; destronado, que seja.
Assiste ruírem delicadamente os pilares do que o faz ordinário.

Um homem, ao cantar, desenha com sons um labirinto.

Um homem, ao saber-se, descobre-se derivado e à deriva.
O ofício de traduzi-lo é tão cartográfico quanto o de ocultá-lo;
Demanda o uso de bússolas raras - as que apontem para dentro.

Um homem, ao saber-se, está prestes a se tornar terrivelmente perigoso.

[Dos: POEMAS RECÉM-NASCIDOS]