"PORQUE NARCISO ACHA FEIO O QUE NÃO É ESPELHO" (Caetano Veloso).

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

HEMORRÁGICA


[Imagem: Paul vestido como arlequim - Pablo Picasso
Vídeo: Give me one reason - Tracy Chapman]

Queria que esse desejo

Fosse tirado de mim a canivete,
Que essa dependência saísse pela carne
Feito um osso comprimido
De dentro para fora.
Queria que a vontade da palavra
Deixasse de me queimar os tendões
E tudo fosse pacificado:
Como a cicatriz de uma amputação,
A sensação do membro mutilado
Ainda morna, mas amainando.

Queria que a abstinência ácida
Não me corroesse
E a falta de poesia não castrasse
A pouca delicadeza que me sobra.
Que a água dessa correnteza
Não me alcançasse, afogasse,
Que o ar que respiro não fosse inflamável
Tão próximo de minhas insignificâncias.


Queria que a palavra,
Afiada como é – faca, faca muito aguda -
Cortasse de uma só vez.
Irremediável.
Para sangrá-la definitivamente sobre o branco do papel.

[Dos: Poemas recém-nascidos]

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

ABISSAL


[Imagem: Viajante sobre Mar de Nevoeiro - Caspar David Friedrich
Vídeo: Van Diemen's Land - U2]

Vou me jogar daquela ponte
E sem demora.
A ponte, precipitando-se, tenta coser;
Liga-me dos pés à cabeça
De modo que, ao me olharem de repente,
Nem percebam
Que sou um abismo.


Precipito-me para o alto e volto.
Gravito meus arcos, esteios, vigas.
Lastros que se vão alastrando
Abaixo do céu,
Acima da terra,
Além da consistência imutável.
Vou me jogar daquela ponte,
Dragar-me e desaparecer
Dentro de mim
Que sou um abismo.


Entre um barranco e outro,
Lá estou, pesado, mas flutuando.
Desexistindo, contudo, presente e fundo.
Somente a ponte me dá dimensões,
Dimensões de inexistir.
Vou me atirar daquela ponte
E sem demora.
Vou ser abismo completo
Sem fronteiras,
Impossível de ser atravessado.

[Dos: POEMAS RECÉM-NASCIDOS]



sexta-feira, 28 de outubro de 2011

BOUGAINVILLES


[Imagem: The little violinist sleeping - Antoine Auguste Ernest Hebert
Vídeo - Wake me up when september ends - Green Day

Ao vociferar explosivo do cacho de bougainvilles
A vidraça treme o carmim-solferino que a transpassa.
Vem colher-me aquele tiro de cor
Cuja espoleta é a própria luz irradiada – contra-muro,
E, como alvo fácil, fatigado,
Tombo sangrando invisivelmente.
Beleza violenta e certeira.

Listram-se persianas,
Escorrem tremeluzes derretidas
Alagando o carpete até os pés da moça.
E meus olhos arvorados, carcomidos pelas entrefrestas,
Refugiam-se, castrados, num ponto ou noutro
Onde seja possível sobreviverem ao que lhes resta.
Os bougainvilles disparam, frenéticos,
Projéteis teleguiados
Diretamente contra minhas retinas desprotegidas.

Como passa a manhã sobre os papéis!
Maços de cartas, datas amassadas, calendários.
(E eu, que anteontem era moço).
As teclas de um a nove ou de um a zero,
E todas as canetas em alinhamento marcial.
Como se agora, e só agora, tivesse me ocorrido
Que foi transe alucinógeno e nada mais.
(E eu, que anteontem).

Meus cabelos excessivamente curtos e brancos,
Meus ombros largos e fatigados,
Meus dentes de siso inclusos e decíduos
Meus dias devotados à paz insípida.
Meus pés dentro desses sapatos caros.

Tudo passa
Mesmo o cacho de bougainvilles.
Mesmo o cacho de bougainvilles que,
Antes ainda do dia de finados
Não será nada além da lembrança carmim-solferino
De toda a sua beleza.
Ou será, será, por ter sido exatamente aquilo:
A lembrança carmim-solferino
De toda a sua beleza.
[Dos: POEMAS RECÉM-NASCIDOS]



terça-feira, 18 de outubro de 2011

PETRA SUBIU À TORRE




[Imagem: Soap Bubbles - Jean-Baptiste Simeon Chardin
Vídeo: Torn - Natalie Imbruglia]

Petra subiu à torre para orar,
Para orar ao próprio reflexo
E, enquanto orava, reconheceu
A deidade que a habitava.

Petra subiu à torre para olhar,
Para olhar o próprio reflexo
E, tanto que olhasse, mais e mais
Ele se gastava
Contra o céu no horizonte em chamas.

Petra subiu à torre para ornar,
Para ornar o próprio reflexo
E, ornasse com fitas, laços ou flores,
Ainda assim lhe pareceria
Desoladoramente opaco,
Brutalmente liso e regular.


Petra subiu à torre para ocupar,
Para ocupar o próprio reflexo
E, no termo com que avançava,
Mormente se perdia em si – ou de si.
Um barco rumo ao nevoeiro,
Um pássaro contra o sol,
Um seixo atacado ao rio.


Petra subiu à torre para observar,
Para observar o próprio reflexo.
Observar-se, mutuamente, com o que não era.
Feito bolha de sabão
Que por meio enigmático pairasse
Diante dos olhos indecifráveis
Da mais indecifrável de todas as gárgulas
Da torre onde Petra subiu.

Petra subiu à torre.
Para aprender a voar.

[dos: POEMAS RECÉM-NASCIDOS]

sábado, 21 de maio de 2011

ODE INAUDÍVEL


[Imagem: Ophélia - John Everett Millais
Vídeo: Bachianas Brasileiras - N. 5 - de Heitor Villa Lobos - Amel Brahim] 

Salga esse silêncio
Para que ele dure
E moscas não o comam
Nem botem ovos na flor de seus intestinos.

Esse silêncio em brasa
Avassala. Escravo de sua voz ausente,
Macia, ininteligível
Dobro-me sobre os joelhos
Para tentar enxergar
Suas pegadas
Na branca face da cerâmica
Que cobre o chão.

Salga esse silêncio,
Te peço,
Proteja-o de apodrecer
Às primeiras horas da manhã,
Quando o primeiro raio de sol
Tocar a pétala da primeira margarida.
Proteja-o de explodir
Quando rebelar-se o panapaná.

Salga-o.
Salve-o de suicidar-se diante de mim
Quando eu abrir os olhos
E disser “bom dia”.

Que o silêncio perdure
Na tua caixa
De música
Constantemente cerrada.

[Dos: POEMAS RECÉM-NASCIDOS]

quinta-feira, 24 de março de 2011

AS LUVAS


 [Imagem: Pé e mão - Eivar Moya 
Vídeo:  Send me an angel - Scorpions]

Recebo, consternado, de tua mão
A marca da minha própria.
Algo que me tiveste levado
E só então trouxeste de volta,
Tornaste a mim a linha da vida
Ou outra impressão qualquer
Para que eu pudesse me recompor,
Ser inteiro, talvez.

Agora, vê,
Quanto tempo estive olhando para mãos lisas,
Quantas vezes as esfreguei contra rochas para marcá-las,
Quanta falta me fez a linha do destino
E a linha da vida
E a linha do coração.
Tanto desencanto pela pura inexistência
De identidade.

E me constrange como se estivesse ainda nu
E sempre tivesse estado nu.

Constrange-me por não passar de uma luva.
Os sinais que ora enxergo
Parecem de uma falsidade irremediável
E titubeio
Entre permanecer com as mãos lisas, a identidade inexpugnável,
Ou aceitar tal pele sobreposta à minha e desejar
Desejar ardentemente que ela me revele
O irrevelável.

Recebo, consternado, de tua mão
A marca da minha própria.
E nada do que vejo sou capaz de reconhecer
Assim como, se levasse ao rosto as palmas recém-marcadas
Elas também não o poderiam reconhecer.
De que adianta, então, ter de volta as linhas
E os calos e os vincos e as cicatrizes?
De que adiantam habilidades táteis
Quando o que se quer é a luz?

[Dos: POEMAS RECÉM-NASCIDOS]



NOTA: Tenho o coração confortado pelas pessoas que não deixaram de vir à minha casa enquanto eu mesmo estive fora... Vocês cuidaram dela para mim. Tenho vindo pouco, mas sinto o cheiro de cada um que passa por aqui. É festa sensorial e alento para meus dias velozes. Obrigado!

domingo, 30 de janeiro de 2011

BALADA DO EMPAREDADO


[Imagem: Icarus - Hendrik Goltzius 
Vídeo:  Ironic - Alanis Morissette]

Com uma parede contra as costas – oprimindo
E outra se erguendo à frente do meu peito
Sinto o ar fresco rareando, se esvaindo
Numa medida crescente que não tem jeito.

Opostas ao coração as costelas – comprimindo
E o osso esterno oposto ao tórax estreito,
Na medida em que a parede se vai subindo
Sobe-me também um pavor que não tem jeito.

Grossas correntes presas aos pulsos – aspergindo
O suor dos braços nesses tijolos desfeitos,
Uns sobre os outros eles se vão reunindo
Como muralha fatal que não tem jeito.

As pernas fracassadas – a sanidade caindo
O corpo pesando com um congênito defeito,
Penso que ouço – grasna o carrasco sorrindo
Dessa minha condição que não tem jeito.

Vai-se a parede – à altura dos olhos – indo
Selar a alcova, seu pouco ar rarefeito
Parece-me aos olhos que estou dormindo
Numa escuridão eterna que não tem jeito.

Já emparedado – com o oxigênio findo,
Cai-me – pesada – cabeça pr’ao lado direito,
Espaço para que a loucura se vá construindo
Como parede de cova que não tem jeito.

E antes que a demência acabe nutrindo
De irônica vida o mortuário leito,
Forço toda a força dos ossos partindo
Forçando os tijolos que não têm jeito.

E se ainda agora há o sangue fluindo
É que a testa dura encontrou defeito
Na parede nova – a carne se abrindo
Encontrou a cura pr’ao que não tem jeito.

Eu – emparedado – sofro ou estou fingindo?
Cedo à condição que já não tem jeito.
Uma parede às costas se auto-destruindo
E outra se elevando dentro do meu peito.


[Dos: POEMAS DO ESTOQUE]

domingo, 23 de janeiro de 2011

TEIMOSIAS SECRETAS


(Imagem: The artist's children - David Davies
Vídeo: Cuitelinho - Renato Teixeira] 

(Ou: Partes do grande tratado universal acerca do que se pode ou não fazer num fim de tarde).

I.
Pelo silêncio eu chego a Deus.
Deus chega a mim pelo mistério.
Tá aí a nossa diferença primordial:
Sou mais objetivo e mais econômico.

Dezenas de vezes reconheço que falho,
Mas na maior parte do tempo eu teimo mesmo.
Quando há possibilidade de inventar uma desculpa
Eu a invento, mesmo que a verdade seja mais fácil.
A natureza das desculpas é nos colocar em constante perigo
Como se Deus nos deixasse por nossa conta
Naqueles minutos em que as elaboramos.

II.
Um velho tem mais sabedoria do que eu,
Uma criança tem mais inocência do que ambos,
Uma passarinho é menos dependente do que os três
E eu, sinceramente, não sei a quem devo me devotar.
(Por falta de coragem
Me devoto aos meus próprios interesses.
Sendo assim, erro para dentro).
O egoísmo não é a melhor saída,
Mas é uma saída bastante cômoda,
(Melhor que a do gambá
Ao fingir-se de morto).
De qualquer modo
Tanto o egoísmo quanto o gambá
Têm seus maus odores.

III.
Por uma janela se vê uma dama nua
Mas pelo buraco da fechadura se vê o que realmente importa.

IV.
Fiz um pacto com Deus
Ele me ensina sua linguagem e eu lhe ensino a minha.
Ele sairá ganhando
Jamais aprenderia nos livros da eternidade
Bestagens tão grandes quanto as que produzo.

V.
Tem um passarinho de papo amarelo fazendo ninho
Num fícus que tenho no quintal de casa.
Se ele me soubesse pedir
Eu o daria uma casinha de barro toda caiada,
Mas ele é orgulhoso demais
(Orgulhoso ou mudo, vai saber...).

VI.
Depois de velho dei pra ficar besta.
Acho que é o fruto do treino de uma vida inteira.

VII.
Vivo na cidade, mas tenho os dois pés
Sujos de esterco de vaca.
Um dia desses arrotei salsinha.
Não é sempre que isso acontece,
Portanto não vivo me arriscando
A arrotar na salada alheia.
Sei que isso é meio asqueroso
Mas se pudéssemos sentir o complexo cheiro das almas
Saberíamos que entre o esgoto
E o roseiral
Tudo o que cheira merece respeito.

VIII.
Nem sempre a tarde se esgueira
Nas frestas da persiana.
Quando isso acontece vejo carros listrados,
Cortados pelas tênues lâminas da janela,
Correndo em desabalada pressa
Pela rua de frente.
Se correrem mais é bem capaz que se desfaçam,
Retalhados...

IX.
Deus me ouviu falar dEle e veio espreitar.
Fico meio sem jeito com a visita,
Nunca sei o que o que pensa a meu respeito.
O que sei é que nunca reclamou
(Isso deve ser um bom sinal).

X.
Parte do meu desejo não passa de um suco de tangerina,
Outra parte ficaria bem feliz de ter assistido
Ao nascimento dos planetas.
Por isso mesmo me detenho por algumas horas,
Todas as noites, a espiar o céu
(Vai que hoje de noite tenha reprise).
Depois que uma ou duas estrelas nascem
Perco a paciência e me volto para o suco.
(Acho que é por isso que nunca vi galáxia alguma nascendo).

XI.
O ineditismo da criação é questionável.
Para que raios se criaria um negócio
Fadado a ser antigo desde seu nascimento?

XII.
O sol já está inteiro escorrendo, escorregando.
Se não o segurarem, escurece.
As árvores da rua já estão se encolhendo
Preparando-se para a noite.
Parece-me que a noite elas ficam menores –
Deve ser por medo do escuro –
Quanto menores, mais fácil de se esconderem.

XIII.
Uma verdade e uma teimosia para terminar:
Verdade é que minha alma tem cheiro de mangueiras
E que em meu coração cabe uma invernada de gado nelore.
Teimosia é continuar tentando ser moleque
No meio dos pastos.
É continuar sentado sobre o mourão do curral,
Distraído, me olhando sempre de longe,
Até que seja definitivamente moleque,
Até que Deus desista
De me envelhecer...


[Dos: POEMAS  DO ESTOQUE]

[Escrito originalmente para o livro "A Minha Idade de Cristo"]

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

POESIA POR QUE?


[Imagem: Oedipus and the sphinx - 
Jean-Auguste Dominique Ingres
Vídeo: L'aurora - Zizi Possi]

Poesia porque a chama da vida se esvazia,
Porque se ri a hiena enquanto ameaçam-lhe a cria,
A leoa que se acerca quando a olha se sacia;
Do cio de ambas as fêmeas a letra se denuncia.

Poesia, poesia, poesia... (Por que?).

Poesia porque a sobra na falta se abrevia,
Abre uma chaga em seu dorso e um verme nela se enfia,
Brilham num mesmo horizonte o condor e a harpia.
Do âmago dessa chaga a letra se pronuncia.

Poesia, poesia, poesia... (Por que?).

Poesia porque a sede nela se acaba e se inicia,
Porque nas garras da águia a serpente rodopia,
Num ninho das taturanas a borboleta crescia
E o que antes era fogo queima em letras, se recria.

Poesia, poesia, poesia... (Por que?).

Poesia porque a sorte se descobre ao fim do dia,
Porque no cheiro dos lobos um almíscar se irradia,
A ramagem da planície lhes cobre a coluna esguia
E p’ras letras que eles uivam, longe uma cigarra chia.

Poesia, poesia, poesia... (Por que?).

Poesia porque a vida ao peso da morte esfria.
Entre predador e caça há a garra e a fatia,
No cheiro ocre de sêmen a fêmea fera procria
E a letra que dela nasce é temporã e tardia.

Poesia, poesia, poesia... (Por que?)

Poesia porque tudo do contrário ruiria.
Porque no bote da píton há veneno e iguaria,
Em seu abraço apertado uma corça findaria
E a letra desse namoro seria finda e fria...

Poesia, poesia, poesia... (Por que?)

Poesia porque ontem a metáfora exigia;
Porque o véu negro da noite a minha alma cobria,
Eu era a fera, o lobo, um monstro em mim residia.
Eu uivava, eu urrava, eu suava, eu renascia...

Poesia, poesia, poesia...

[Dos: POEMAS PERDIDOS NO TEMPO]