[Imagem: Paul vestido como arlequim - Pablo Picasso
Vídeo: Give me one reason - Tracy Chapman]
Queria que esse desejo
Fosse tirado de mim a canivete, Que essa dependência saísse pela carne Feito um osso comprimido De dentro para fora. Queria que a vontade da palavra Deixasse de me queimar os tendões E tudo fosse pacificado: Como a cicatriz de uma amputação, A sensação do membro mutilado Ainda morna, mas amainando.
Queria que a abstinência ácida Não me corroesse E a falta de poesia não castrasse A pouca delicadeza que me sobra. Que a água dessa correnteza Não me alcançasse, afogasse, Que o ar que respiro não fosse inflamável Tão próximo de minhas insignificâncias.
Queria que a palavra, Afiada como é – faca, faca muito aguda - Cortasse de uma só vez. Irremediável. Para sangrá-la definitivamente sobre o branco do papel.
[Imagem: Viajante sobre Mar de Nevoeiro - Caspar David Friedrich
Vídeo: Van Diemen's Land - U2]
Vou me jogar daquela ponte E sem demora. A ponte, precipitando-se, tenta coser; Liga-me dos pés à cabeça De modo que, ao me olharem de repente, Nem percebam Que sou um abismo.
Precipito-me para o alto e volto. Gravito meus arcos, esteios, vigas. Lastros que se vão alastrando Abaixo do céu, Acima da terra, Além da consistência imutável. Vou me jogar daquela ponte, Dragar-me e desaparecer Dentro de mim Que sou um abismo.
Entre um barranco e outro, Lá estou, pesado, mas flutuando. Desexistindo, contudo, presente e fundo. Somente a ponte me dá dimensões, Dimensões de inexistir. Vou me atirar daquela ponte E sem demora. Vou ser abismo completo Sem fronteiras, Impossível de ser atravessado.
[Imagem: The little violinist sleeping - Antoine Auguste Ernest Hebert
Vídeo - Wake me up when september ends - Green Day
Ao vociferar explosivo do cacho de bougainvilles A vidraça treme o carmim-solferino que a transpassa. Vem colher-me aquele tiro de cor Cuja espoleta é a própria luz irradiada – contra-muro, E, como alvo fácil, fatigado, Tombo sangrando invisivelmente. Beleza violenta e certeira.
Listram-se persianas, Escorrem tremeluzes derretidas Alagando o carpete até os pés da moça. E meus olhos arvorados, carcomidos pelas entrefrestas, Refugiam-se, castrados, num ponto ou noutro Onde seja possível sobreviverem ao que lhes resta. Os bougainvilles disparam, frenéticos, Projéteis teleguiados Diretamente contra minhas retinas desprotegidas.
Como passa a manhã sobre os papéis! Maços de cartas, datas amassadas, calendários. (E eu, que anteontem era moço). As teclas de um a nove ou de um a zero, E todas as canetas em alinhamento marcial. Como se agora, e só agora, tivesse me ocorrido Que foi transe alucinógeno e nada mais. (E eu, que anteontem).
Meus cabelos excessivamente curtos e brancos, Meus ombros largos e fatigados, Meus dentes de siso inclusos e decíduos Meus dias devotados à paz insípida. Meus pés dentro desses sapatos caros.
Tudo passa Mesmo o cacho de bougainvilles. Mesmo o cacho de bougainvilles que, Antes ainda do dia de finados Não será nada além da lembrança carmim-solferino De toda a sua beleza. Ou será, será, por ter sido exatamente aquilo: A lembrança carmim-solferino De toda a sua beleza.
Petra subiu à torre para orar, Para orar ao próprio reflexo E, enquanto orava, reconheceu A deidade que a habitava.
Petra subiu à torre para olhar, Para olhar o próprio reflexo E, tanto que olhasse, mais e mais Ele se gastava Contra o céu no horizonte em chamas.
Petra subiu à torre para ornar, Para ornar o próprio reflexo E, ornasse com fitas, laços ou flores, Ainda assim lhe pareceria Desoladoramente opaco, Brutalmente liso e regular.
Petra subiu à torre para ocupar, Para ocupar o próprio reflexo E, no termo com que avançava, Mormente se perdia em si – ou de si. Um barco rumo ao nevoeiro, Um pássaro contra o sol, Um seixo atacado ao rio.
Petra subiu à torre para observar, Para observar o próprio reflexo. Observar-se, mutuamente, com o que não era. Feito bolha de sabão Que por meio enigmático pairasse Diante dos olhos indecifráveis Da mais indecifrável de todas as gárgulas Da torre onde Petra subiu.
Quantas vezes as esfreguei contra rochas para marcá-las,
Quanta falta me fez a linha do destino
E a linha da vida
E a linha do coração.
Tanto desencanto pela pura inexistência
De identidade.
E me constrange como se estivesse ainda nu
E sempre tivesse estado nu.
Constrange-me por não passar de uma luva.
Os sinais que ora enxergo
Parecem de uma falsidade irremediável
E titubeio
Entre permanecer com as mãos lisas, a identidade inexpugnável,
Ou aceitar tal pele sobreposta à minha e desejar
Desejar ardentemente que ela me revele
O irrevelável.
Recebo, consternado, de tua mão
A marca da minha própria.
E nada do que vejo sou capaz de reconhecer
Assim como, se levasse ao rosto as palmas recém-marcadas
Elas também não o poderiam reconhecer.
De que adianta, então, ter de volta as linhas
E os calos e os vincos e as cicatrizes?
De que adiantam habilidades táteis
Quando o que se quer é a luz?
[Dos: POEMAS RECÉM-NASCIDOS]
NOTA:Tenho o coração confortado pelas pessoas que não deixaram de vir à minha casa enquanto eu mesmo estive fora... Vocês cuidaram dela para mim. Tenho vindo pouco, mas sinto o cheiro de cada um que passa por aqui. É festa sensorial e alento para meus dias velozes. Obrigado!