"PORQUE NARCISO ACHA FEIO O QUE NÃO É ESPELHO" (Caetano Veloso).

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

POEMAS RECÉM-NASCIDOS


MARCHAI!

Levas de retirantes,
Hordas de famintos e miseráveis,
Rumas de cabisbaixos desesperançados,
Batalhões de inenarráveis vozes, murmúrios e silêncios:
Marchai!

Marchai, pois, marchai!

Ancorada está a nau dos degredados,
Tremulam em mastros distantes as bandeiras negras dos corsos
E estes afiam suas longas unhas, imundas, desgastando-as na proa.
Suam os remadores, seus dorsos deformados, impulsionando a galé;
Emparelham-se todas as embarcações e ouvem o chamado:
Marchai!

Marchai, pois, marchai!

Turba de ignorados,
Populacho, dignos representantes da escória,
Líderes da malta e seus asseclas,
Súcia dos desprovidos, dos sujos e desnudos,
Meretrizes, pederastas, reis e rainhas da noite e dos guetos.
Enfileira-se o clã dos madraços, de punhos cerrados:
Marchai!

Marchai, pois, marchai!

Coronéis desonrados em batalhas antigas,
Generais carcomidos de ferrugem e covardia,
Soldados de baixa patente, estima e bravura.
Nenhuma medalha a reluzir, e ainda as armas embainhadas.
Mancam seus cavalos e de velhos se curvam.
Pesam-lhes nas mãos as baionetas, retinem,
Quando, ao longe, rugem canhões apodrecidos:
Marchai!

Marchai, pois, marchai!

Porque este é um canto de esperança.
Disparadas foram, as palavras, e marcaram as paredes das casas,
Esburacam-nas com seu aço e sujaram-nas de pólvora.

Marchai, marchai mais!

Porque a voz que dormitava recobrou-se
Da borda do abismo.
Sonambolava, prestes a ceder,
Mas do fundo ouviu-lhes a marcha e acordou.

Marchai, ainda e ainda, marchai!

Porque não é a fome que aniquila, mas a resignação.
Tampouco o exílio o que oprime; mas a fuga.
Levantem suas cabeças e batam os pés
Para que trema a terra e se curve o céu,
E todo o silêncio seja estilhaçado na primeira hora.

Marchai, marchai, marchai!

Rumo ao porto – ser vela e vento e mar.
Contra ondas negras e monstros das profundezas, vão!
Tomar de assalto as caravelas dos conquistadores
E quebrar os remos das galés para que deslizem sem esforço.
Para que se acalmem as águas e se abra o firmamento.

Marchai, ainda que exaustos, marchai!

Com suas vestes de corte, manchadas e rotas.
Ao som dos doídos clarins e por entre olhares incrédulos.
Realeza inexpugnável, cuja dignidade se oculta sob a pele;
Soberanos das sobras, majestades do submundo.
Sois os herdeiros da escuridão, da noite e dos faróis.
E na cova de seus rastros eclodirão,
Feito serpentes indestrutíveis, os novos dias.

Marchai, sim! E sangrando, marchai!

Pela ausência de divisas em seus ombros
E pelo que lhes foi negado desde a aurora.
Para vingar os cavalos estirados no campo de batalha,
Recobrar a honra e a coragem.
Avancem! E sem demora, visto que o temo os come.
Avante, soldados desfardados,
Avante desafortunados, coroados de maus agouros.
Levantem e sigam, porque este é um canto de esperança.
Sacudam-na, façam tremer suas vestes verdes,
Pois ela só desperta depois que todos despertarem.

Marchai, marchai, e sempre e muito, marchai!

Porque sem marcha a vida se esgota
E toda sorte de fungos a faz apodrecer.
Marchai sobre a feiura dos campos desérticos;
Os que precisam ser semeados.
Pelo que não vingou e por tudo que ainda há de ser.
Pela angústia que nos irmana do mesmo lado do rio
Como se um único fôssemos todos nós.
Marchai por vós e marchai também por mim,
Poeta exilado, apátrida,
Cujo coração vermelho
Pulsa em verdíssimo manto,
Sob os pesados pés do universo.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

POEMAS RECÉM-NASCIDOS


A MEDUSA

Paz das coisas tolas e pequenas
Dos cerrados retorcidos e das casas velhas
Carcomidas por lembranças em pó.

Paz das almas fracas e servis,
Dos cordeiros dependurados
E das moscas festejando restos azuis.

Paz das senzalas interiores,
Dos jazigos presenteados ao nascimento.
Dos serenos rios correndo a um só lugar.

Paz dos varais tremulantes,
Dos tanques intermináveis de lençóis quarados,
Dos dedos crus das lavadeiras.

Paz dos hirtos, enfermos e contentes.
Dos átrios sem gente ou pressa.
Do mato crescendo por entre pedras.

Paz dos lagartos sob os troncos,
Dos homens sob cascas
E das almas por detrás de cortinas.

Paz sem serventia.
Paz que não se levanta nem reage.
Paz letárgica e mentirosa.

Em constante guerra se ergue
O meu coração.

Sujo de sangue.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

POEMAS RECÉM-NASCIDOS


CONTEMPLAÇÃO

Quando a beleza devassa as sombras
E põe fogo nos azulejos da casa,
Quando o vento se enrola nos pés de mesa
E canta nas frestas músicas antigas,
Quando o silêncio se curva para ouvir
E dar voz aos grilos e às cigarras,
Quando o espírito crepita,
Fagulhando cinzas, brasas, entre o passado e futuro.
É nessa hora que me engasgo,
Saio tateando o impalpável,
E todos os sentidos moram num só lugar:
Os meus dedos.

Quando a palavra exata desaparece,
Mesmo se tendo fantasiado de infinita,
Quando as fechaduras portam olhos
E os espelhos descansam da carga de refletir.
Quando a poeira de sobre as coisas toma forma
E aspecto de outra matéria que não poeira.
Quando o eterno dorme nas teias das aranhas
E nelas se balança, prestes a cair.
É nessa hora que me entrego,
Deixo que me comam as horas,
E elas me vão devorando a partir do centro
(E dos ossos).

Quando a maré se levanta, se atira contra o quebra-mar
E sangra espumas brancas entre veias pétreas,
Quando a força das insignificâncias ganha corpo
E explode brotos nas frestas das calçadas.
Quando o visgo de existir cobre a própria existência
E a esverdeia inteira, umedecendo-a sem a manchar.
Quando verdade e certeza deixam de importar
E a melancolia espalha unguento nos batentes das portas.
É nessa hora que me embargo,
Esfrego o meu cio nos objetos e na vida. Descanso.
E todas as necessidades tornam-se uma:
Contemplar.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

POEMAS TARDIOS


DEPILAÇÃO DOS GRANDES LÁBIOS

Arreganha – aranha!
O manto, negro
Véu de sua sanha,
Seus dentes,
Seus lábios latentes,
Arreganha,
Sua boca ardente
Afiado cílio
Que arranha.

Quando lambe, a lâmina,
Docemente -
Deslizando, secreta,
A carne proeminente,
- Essa montanha,
Arreganha – aranha!
Assanha a semente
Para que nela cresça
A língua,
Para que dessa
Íngua
Brotem licores
Quentes.

Estranha simetria
Essa sua cova esguia,
Cova de harpia – aranha!
Arreganha
A orquídea híbrida,
A rubra papoula.
Os tufos de pêlos
Juntam-se, novelos,
Ceifados – aranha!
A herança crioula
Revela-se moura
Onde a unha
É estranha.

Arreganha – aranha!
Beba do que lhe banha.
Lisa face rósea
Lisa carne teácea,
Desnudada barganha.
A navalha cega
Se rende
Se entrega
A sua façanha.
Arreganha – aranha!
A vulva-cela.
Revele de dentro dela
O seu poder,
A sua manha...

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

CRÔNICA DO DIA


PEIXE PEQUENO

Hoje meu pai me perguntou se todos os peixes do mar são salgados como a sardinha.

Falávamos ao telefone, descontraídos e distantes; eu olhando a lua estendida na vastidão de água, e ele, por sua vez, preocupado com possíveis tempestades. Eu dizendo das poucas pessoas que caminhavam pela praia naquele momento e ele me narrando o calor infernal que lhe cozinhara o dia.

Disse-lhe que por aqui não faz calor, que venta muito e as janelas precisam ficar fechadas, assim como as portas, assim como o peito. Caso contrário caem os vasos, rasgam-se as cortinas e a saudade escapa, toma conta de tudo. (A frase não foi isso tudo, mas teve esse significado em minhas entrelinhas).

Do outro lado ele sorria, profundamente admirado com as viagens que fiz e, certamente, com as grandes distâncias que separam o sítio - a cidadezinha parada no tempo - do vasto mundo que me atribui. Orgulho silencioso de quem tem um filho que deixou de ser menino e assumiu os riscos de ir além (ou aquém).

(Verdade é que o tempo nos distancia do início sem, contudo, oferecer instrumento para aferir evoluções ou desvios de rota. Razão pela qual é difícil dizer se o homem piorou o menino ou se o menino melhorou o homem... Vencido pela dúvida, melhor mesmo foi não contraditar o silêncio admirado de meu pai).

Foi assim, meio sem nada, meio sem jeito, a ligação ruim e a distância pondo ruído em nosso assunto - entre uma pausa e outra - que ele me perguntou se todos os peixes do mar são salgados feito a sardinha.

E eu, corriqueiramente e sem dar volume ao fato respondi que não. Ele se corrigiu, algo envergonhado. (Lembrou-se das sardinhas frescas que comprava; elas não eram salgadas). Riu constrangido e seguiu adiante, como sempre faz.

Pensei imediatamente na quantidade de coisas que ele me ensinou ao longo da vida... É, pai, você não viu metade do que eu vi, e eu não sei um décimo do que você sabe.

Façamos o seguinte: quando eu chegar à sua idade, com filhos criados, netos e uma família da qual me orgulhar a gente volta a falar de peixe. Até lá, se importe com isso não...

(No final das contas o mar é salgado e grande. Como o tempo, a distância e a saudade. O resto é peixe pequeno)...

sábado, 31 de outubro de 2009

POEMAS TARDIOS


POEMA EM PRETO E BRANCO

Cervo da noite.
Dono de um coração cuja musculatura
A manhã tratou de refrigerar
Com o primeiro orvalho.
Ele assistia.

Esvaía-se o dia em sangue dourado
Jorrado desde a ferida aguda no âmago alto do céu.
Vazava a luz áurea sangrando o universo
(O Apolo amputado queimava sobre seu coche)
- Ardia o firmamento
- Queimavam-se as nuvens, o cigarro e as veias.
Nada de pé e tudo ereto.
Até os pêlos, até os ossos, até a lâmina.

O guerreiro, do qual a noite era mãe,
Assistia pacientemente seu inimigo reinar.
Espada em punho ele o via debater-se no alto
E esperava.
Esperava a hora de cravar-lhe o gume certeiro
E vê-lo, por fim,
Atirar-se, ferido, atrás do horizonte
Para morrer.

Reinaria novamente ele,
O guerreiro.
Escuro e quieto sob seu manto negro.
Irmão da lua, das aves que caçam nas sombras,
Reconstruiria seu reino de mistérios sobre os rochedos e o mar.
E nada além, acima ou acerca de seus muros
Brilharia
Até o novo dia
Quando, destronado,
Assistiria o universo se incendiar.

(Queimaria secretamente também, por doze horas,
Guardando a negra fumaça de sua carne
Para tudo enegrecer
Sucessivamente).

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

POEMAS RECÉM-NASCIDOS


BELIGERÂNCIA

Ah, que hoje é o dia. Ei-lo.
Vieram rugir os gigantes à minha porta
E corvos pousaram na amurada.
Todas as sombras se curvaram
Enquanto a luz se escondia debaixo das pedras...
Eis esses meus olhos contempladores do escuro,
E a minha alma em festa, beligerante e delicada,
Não temem a nada, a absolutamente nada.

Ah, que é esta a hora. E seja.
Cercaram-me os umbrais criaturas de pedra
E gárgulas negras voejam ao largo da enseada.
Os sons arderam no gume das palavras
E o vento da manhã se ocultou por entre as folhas...
Eis que aos sinais, os ignoro e ainda respiro
- O ar escasso, um bálsamo amoníaco – a lufada.
E me amedrontam nada, absolutamente nada.

Ah, que esse é o tempo. Heiah!
Demônios se entrincheiraram entre os antúrios
E pelas raízes ceifaram a erva que fora plantada.
Secou o orvalho junto do primeiro raio
E o frescor se foi, amoitar-se entre os répteis...
Eis que a minha carne velha se enrijece como nunca
E o meu coração se amansa - arma engatilhada -
E nada o aflige, nada. Absolutamente nada.

Ah, que o momento se fez. E já.
Sílfides rubras forçam janelas, se esgueiram,
E os vermes rastejam infectando a entrada.
Desbotam-se as cores além da antiga vidraça
E todos os reflexos singularmente envelhecem...
Eis o meu espírito de ferro em meio ao pó dos anos
E a minha alegria teimosa - intacta e preservada,
Não se acovardam ou curvam. A absolutamente nada.


terça-feira, 27 de outubro de 2009

POEMAS TARDIOS


DESCIVILIZAÇÃO

Faça o sinal da cruz antes de entrar.
Se benza e unte, meu irmão!
Porque aqui – morada de lobos -
Aqui não!

Traga fora da bainha a sua faca.
A figa, o patuá, a vela queimada.
Porque aqui - rinha de galos –
Aqui, nada!

Afie as unhas no batente áspero.
Dentes precisos, unhas aduncas,
Porque aqui - cova de feras -
Aqui, nunca!

Feche o corpo, recobre a calma.
Resguarde sua alma, meu irmão!
Porque aqui - arena de homens -
Aqui não!

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

POEMAS RECÉM-NASCIDOS


A MULHER NO ESPELHO

A mulher no espelho
Depila
Aquele pêlo que pelo espelho
A admira.

A mulher no espelho
Prepara
A armadilha que em pleno espelho
Se arma.

A mulher no espelho
Suspira
Olhando aquela que do espelho
Transpira.

A mulher no espelho
Modela
O penteado, e pelo espelho
O revela.

A mulher no espelho,
Breve,
Deixa seus restos no espelho.
Está leve.

domingo, 25 de outubro de 2009

POEMAS TARDIOS


ARTEMIS

Ela sibila, esguia,
Estridente ente na forquilha
Exala perfumes inexatos
Capazes de arrebatar
Qualquer olfato.

Sulca com os dedos
A morna mata
Plana, rasteira,
Úmida, densa, vegetal.
Carne molhada
Como se houvesse ali
Sido abatida
Uma presa
E ainda arfasse
E ainda respirasse
Com dificuldade.

A lança ponta de unha,
E a caça se atira contra ela
Devorando-a,
Uma, duas lanças
Precipitam a inquieta sensação
Que lhe percorre
Com terrível rapidez
Todas as extremidades,
Todas as cavidades
Todos os poros.
A fera saliva
A presa arfa
A lança morna
É o troféu da caça
Delicadamente fincado
Nela.

Ela grunhe
Ela range os dentes serrados.
Gutural, contraindo-se,
Uma píton em torno da presa,
Língua no céu da boca...
Relaxa, então, exausta.
A outra mão
Que lhe vai alisando,
Acalma os sentidos
Deflorados.
À flor dos pêlos.
A perenidade se lhe vai tomando,
Deitando-se sobre ela
Devagar
E ela dorme
Ainda com os dedos suados.
Saciados.
Saciada.

sábado, 24 de outubro de 2009

POEMANS ANTIGOS (MAS AINDA VIVOS)


OS OLHOS DO MEU AMOR

Os olhos do meu amor
São de um azul celestial
De um céu de outubro
Com sol a pino.
Meio dia – dia quente
E seus olhos reluzindo...
Os olhos do meu amor
São mãos inescrupulosas
Que me tiram as roupas
E exploram minhas mucosas,
Os olhos do meu amor
Me derretem
Me renovam.

Quanta variedade de azul existe na palheta?
Nenhuma, entre todas elas, tem a tonalidade secreta
Que seus olhos únicos escondem
Mesmo completamente despidos, leves e revelados.
Os olhos do meu amor são o espelho onde mergulho
Onde meu orgulho é encontrado,
O lago onde adentro até os joelhos
Onde sou profundamente sugado.
Os olhos do meu amor são meu amparo
O anteparo para o que me é sagrado
Seu coração no meu peito
O meu em seu peito guardado.
Os olhos do meu amor
Me devoram
E eu imploro para ser devorado.

Os olhos do meu amor
Cobalto–turquesa–anil
Com seu brilho azul intenso
Com seu apelo infantil
Devora-me a alma em chamas
Me atraca pelo quadril
Os olhos do meu amor
São raios num céu de abril
Coberto de nuvens rubras
Da tarde que não caiu.
Os olhos do meu amor
São minha cama
Meu covil
Onde remoço e me esqueço
Por horas e horas a fio.

Os olhos do meu amor
Quando entram em casa
Acendem todos os cômodos.
Eles me tingem de azul
E me fazem mais bonito.
Sou um céu
Quando eles chegam...



Para o meu amor, cujos olhos são os mais lindos que já vi.

(Trata-se de um poema escrito em 2007, mas que veio a calhar para esta noite, enquanto meu amor volta para casa, matar meus dois dias de saudade).

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

CONTOS AMANHECIDOS


O RUBI

O catador de papelão permanecia sentado ao lado do corpo, contemplando o brilho vermelho da pedra que tinha entre os dedos. Abandonada ao lado a carroça de homem-de-carga, ainda vazia; aglomeravam-se os passantes, eufóricos, mas silenciosos, para contemplar a cena. Eram seis da manhã.

As quatro e meia ele havia juntado os cobertores e deixado o mocó. Antes, como fazia todos os dias, examinara o bolso em busca do rubi. Estava lá, a pedra irregular, rubra feito a vida. Cedo ou tarde a venderia. (Bom dinheiro, bom dinheiro, sem dúvida). Iria comer todos os dias, todos um dias um sanduíche com duzentos gramas de mortadela e um copo de achocolatado, um não, dois. E teria casa. Era certo, bastava vender a pedra.

Dez anos que a levava consigo junto do peito. Seu tesouro. Encontrou-a entre caixas de papelão e vestidos. (Os vestidos? Os guardou enquanto esperava que a mulher voltasse. Mas como o encontraria? Ela, que se fora numa manhã branca, comprar o pão do dia enquanto lhe punham o barraco a baixo. Não voltou. Sem ela e sem o pão ele se aquietou, sentado junto aos entulhos, até que fome lhe rasgou as carnes e a falta lhe ardeu nos olhos).

Os deu para uma dona. Seis ou sete anos depois. Uma dona que lhe abriu as pernas e fez a saudade dela aumentar. Não tinha mais os vestidos, mas o rubi... Com uma casa ela voltaria. Endereço fixo, sanduíche de mortadela, macarrão com frango no domingo.

(Guardou-o para ela até aquele dia)... Andou os quilômetros de sempre e, sempre, como fazia sempre, sentou-se para descansar antes de percorrer as ruas habituais. Coçou o rubi no bolso. Tirou-o devagar e enamorou-se dele, porque era vermelho como os lábios dela, e tão vermelho quanto a saia e tão vermelho ainda, quanto o fogo dela.

Entretido que estava mal sentiu o outro que se achegava. Só se deu conta quanto lhe arrancou a pedra da mão e partiu para o meio da praça feito cão ladino. Pôs-se atrás. Corria bem. Cinquenta anos nas costas, doze de carroça, mas com pernas fortes. Vinte passadas largas e se atirou sobre o sujeito, derrubando-o.

Deu-lhe de punho fechado. Na nuca, nas costas. E quando se virou, deu-lhe no rosto e nos dentes, mas o malandro não soltava. Resistia, esperneava. Só depois de lhe prender os braços sob os joelhos foi que teve certo domínio. Vendo-o ali, de mão cerrada, lutando para se desvencilhar, não lhe restou maneira. Trançou-lhe as mãos em volta do pescoço e apertou. Apertou. Apertou. Lhe fugiram os olhos, foram indo. E os olhos eram ela, ela fugindo, escapando. As forças se abatendo lentamente, escoavam; lembranças. Até que o sujeito parou de respirar e ele pôde ter de volta a sua pedra. Arrancou-a de entre os dedos ainda quentes.

Quando chegou a polícia ele estava inerte, absorvido pelo brilho da pedra.

Tomaram-na de sua mão sob protestos e gritos. Tempo em que um o algemava e o outro a examinava detidamente.

“Vamos embora”. E o meteram na viatura. Antes, porém, o outro policial se livrou da pedra que trazia na mão. Jogou-a pela janela.

“Meu rubi”. Chegou a dizer, e os policiais riram; riram porque cacos crepitaram na calçada assim que vidro grosso a tocou.

Já se distanciava o carro; ele permaneceu contemplando. Estrelas frágeis de fogo e sol sendo varridas junto das folhas mortas pela noite...

Não a teria de volta, nunca mais...

terça-feira, 20 de outubro de 2009

POEMAS RECÉM-NASCIDOS


A CAÇA

Ela não é óbvia como o que se espera dela.
Cadela? Pode até ser... Somente o cio a revela.
Expõe as tetas por entre gretas de janela.
Como detê-la, se as estrelas brilham nela?

Ele a observa. A queria serva. (Justo ela).
A cadela. A que lhe acerta, lhe aperta firme a goela.
Lhe beijaria os seios pelos entremeios da tela
De sua finíssima blusa. Mas, não! Recusa-se, ela.

Ela não se curva feito o fazem para ela.
Magrela? Gostosinha... Da espinha até as costelas.
Coxas torneadas, longa, delgada, uma gazela;
Como impedi-la, desmenti-la, afastar-se dela?

Ele a teme, porque uma draga vive nela,
Aquela. A cova funda, e mais, a bunda, a arandela
Capaz de sugá-lo, comê-lo, de lhe derreter a vela.
Deve fugir, recusar, contudo se prende a ela.

Ela bem usa; sabe do poder que emana dela.
É bela? Não se importa, nem lhe conforta a tal sela.
É livre, como se espera de uma mulher como ela.

Ele se perde, estremece, endurece pensando nela.
É bela! Pronta a domesticá-lo, sepultá-lo em sua cela,
E livre... O que mais teme em uma mulher como ela.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

CONTOS NOTURNOS.


ANTES QUE A NOITE ACABE

- “Antes que a noite acabe hás de me esquecer!”

Disse-lhe, ainda girando, sacudindo a pachimina que lhe coroava os ombros enquanto dançava.

- “O encanto é como a neve que lenta se deposita sobre as folhas e os bosques. As árvores se vão vestindo de noivas com longos vestidos brancos; emparelham-se ao largo, feito alvos anjos, em profundos silêncio e beleza. Depois se vai, com a primavera. Antes da flor primeira. tudo se derrete, escorre, é absorvido pelo chão”.

E se equilibrava no ar, pondo ondas no finíssimo tecido, sua última pele.

- “Virão outras rosas; outros pardais chilrearão sob a eira de teu quarto e te despertarão para manhãs desconhecidas. E eu terei sido ave de um outro tempo, cujo canto definha no fundo de uma lembrança; beirando a ser irreconhecível. Tentarás assoviar o meu nome, mas os teus lábios se renderão ao esquecimento, à estranheza do intento, ao desconforto de entoar canção que nunca existiu”.

Quase não a ouvia. Rendia-se ao deleite de seus movimentos e ela prosseguia, rodopiando.

- “Veja, que como poeira voarão os teus dias; sempre para frente, sempre adiante. Eu permanecerei lago, água de um só lugar. E menos que água, seixo; e menos que seixo, musgo; e menos que musgo, saudade inominada. Saudade de... Não saberás... Do lugar que nunca viste? Do gosto jamais provado? Do desejo queimado até as cinzas, mas irreconciliável?

Tentou interrompê-la, contudo não conseguiu. Ela tocou-lhe os lábios com os dedos e eles traziam o mel dos anos, da infância.

- “Não diga, não, não diga! É noite, e as palavras se perdem dentro dela. As palavras e tudo o mais para além. As minhas mãos depois das tuas, e os meus seios antes dos teus lábios, e o teu desejo junto do meu, entrecortados, auscultando o galope precioso de instantes por findarem. Não diga, não agora! Para que o silêncio te guarde e escolte; nele encerre lembranças e madrugada, porque antes que a noite acabe hás de me esquecer”.

Ela, então, livrou-se da pachimina rubra e finalmente cessou de dançar. Findara a música. (As horas não).

O tempo se incumbiu de semear cinzas sobre a noite e apagá-la.

Anos depois ouviu a mesma música. Qual ave abatida em pleno voo, acudiu-se dela, perseguiu-a de ouvidos até alcançá-la. (A bailarina rodopiava).

Detrás de vitrina a bailarina; e tão opaca quanto a vitrina, a sensação de limiar. (A peça que lhe faltava? Uma pachimina?) Fagulhas, lembranças abrasadoras, imagens por acender. Lembrar-se de que, afinal?

Da caixinha de música ela, pequenina. Girando, girando em frente ao espelho retangular. Uma bailarina como as outras, que nunca existiu. Não havia o que lembrar.

(Talvez, pela generosidade do acaso, tenha de fato existido; sido esquecida, depois... Antes de a noite acabar).

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

POEMAS TARDIOS.


(Neuzza escreveu em seu Spirituals do Orvalho algo que me chamou tanto a atenção que tentei, modestamente, traduzir).

TRADUÇÃO DA MELANCOLIA

Melancolia é quando a alma foge para dentro dos ossos.
A pele se vira ao avesso
E a base do espírito fermenta sensações árticas de fogo.
É quando os pêlos crescem para dentro
E sentimentos de aço ganham pontas.
Melancolia é um exército,
Campo onde toda a vontade se junta para guerrear,
Para hastear bandeira negra
E espalhar na superfície das horas a inquietação.

Melancolia é corda de cujo nó não se desfaz
Antes de estrangular a serenidade.
Aríete pétreo, ornado de pregos e brasas,
Tomando de assalto a quietude, enquanto faísca,
Enquanto espalha fagulhas sobre tapetes e vísceras.
Melancolia é quando as veias se voltam para fora
E escrevem na superfície da calma palavras indizíveis.
É quando o coração não aguenta é quer sair,
Mas não pode, porque as costelas o estão atravessando.

Melancolia é ventre vazio, infecundo,
Gestação eterna que a luz jamais verá.
É seio de onde o leite coagula antes de ser
Para que a angústia dele não se farte,
Não lhe morda os bicos depois de tanto beber.
Melancolia é o que a garganta arranha sem engolir
E a língua estranha enquanto saboreia.
É o trono em que a razão se senta e assiste
A alma fugir para os ossos,
A glote se comprimir,
Os olhos se desertificarem
E toda a beleza se esconder
Feito jamais houvesse existido.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

domingo, 4 de outubro de 2009

CONTOS NOTURNOS


A NOTÍCIA

- “O gato subiu no telhado”. Disse-lhe gravemente.

- “Não diga mais nada”. Interrompeu e prosseguiu. “Aconteceu, não foi?”

Olharam-se, consternados.

O silêncio disse o resto.

sábado, 3 de outubro de 2009

CONTOS NOTURNOS


ABALA BI!

Alcione era uma estrela. Ninguém cantava como ela, ninguém dançava como ela. Seus shows esgotavam na semana de lançamento.

Cobiçada por homens e mulheres, o vozeirão bethânico acalantava os desejos mais ardentes de uma platéia fidelíssima. Uma Obama blonde, uma Beyoncé dos trópicos, uma Grace Jones de cabelos loiros e anelados que desciam ao meio das costas, além de seus um metro e oitenta e tantos (fora o salto, com o qual praticamente nascera).

Os mais ousados perguntavam, quando a coragem lhes era suficiente, se os cabelos eram seus. “Claro”, respondia (se o bom humor estivesse ligado). “De um jeito ou de outro, são meus, sem dúvida”, e ria mostrando um colar das mais alvas pérolas por detrás dos lábios.

Altiva economizava o que podia para assistir-lhe vez ou outra. Aparecia lá pelas tantas e gritava, nos intervalos: “maravilhosa, poderosa” (coisas de fã). Nutria por ela alguma idolatria, um sentimento místico e uma vontade de se achegar.

E Alcione se deixou. Permitiu a aproximação daquela figura franzina, cuja peruca, visivelmente antiga, carecia de substituição. (Uma estrela generosa, sem dúvida). Não era dada àquele tipo de amizades, mas Altiva Emerenciana Di Vison Di Pollainas Di Buarque Di Camargo Di Mônaco Ballenciaga Vuiton sabia como agradar.

Chás de romã e gengibre, vestidos impecavelmente passados, e tudo sem que Alcione dissesse uma única palavra. Seis meses e já eram amigas de infância.

Contudo as línguas não tardaram a envenenar Alcione. Ela, uma mulher deslumbrante, uma estrela em ascensão, não deveria estar metida com um “veado de quinta”, e Alcione, temendo pela carreira, começou a se fechar para os favores, para as gentilezas de Altiva, até que seu camarim se fechou por completo.

Ressentida, Altiva deixou de frenquentar os shows. Já não se ouvia os gritos de “maravilhosa, nítida, reciclável” na platéia, de forma que os espetáculos voltaram a ser técnicos, justos e burocráticos.

No entanto, a legião de admiradores se enfileirava. Os homens a queriam e as mulheres a invejavam, mas Alcione sentia falta da presença devotada de Altiva. Justo ela, aquela criaturinha pequena que lhe havia confidenciado o maior de todos os seus segredos, seu nome de batismo (e isso sem lhe pedir absolutamente nada em troca), o “veado de quinta” que fazia o melhor de todos os chás de gengibre...

Estava prestes a chamá-la de volta e... Danem-se! Queria uma amiga com quem pudesse se abrir, confessar intimidades femininas... Falar de sua maldita TPM... Tinha saudades de Altiva.

O encerramento de temporada era sempre aquele inferno. Boate lotada, gente de todo tipo. Começou o número sem muito ânimo até pressentir a presença reconfortante da amiga. De fato ela estava lá, escondidinha num canto. No terceiro ou quarto número a viu se achegar para perto do palco e sorriu para ela ao final de um agudo. (Os olhinhos de Altiva escorreram rímel sobre o a maquiagem pesada).

Entusiasmou-se e passou a cantar para a outra. Só para ela. Soltar a voz, tirar da alma, agradecê-la como melhor sabia, cantando.

Enlouqueceu toda a platéia. Empurra-empurra, esbarrões, a primeira garrafa voando e Alcione de olhos fechados, sentindo o poder da música.

Ainda envolvida pela emoção das notas finais ouviu a voz de Altiva, alucinada, gritando como antes: “Abala bi, abala!”. “Tô abalando, amiga, to abalando”, pensou, antes de ouvir o estampido e ir ao chão.

Acordou no hospital doze horas depois. Felizmente o tiro fora de raspão. Livre da morte Alcione assistiu à morte do mito. O tiro não lhe tirara a vida, mas o estrelato. Passara dois centímetros acima da orelha direita e levara consigo a peruca loira.

Olhou para o lado, o quarto frio, a parafernália, a agulha na veia e o soro escorrendo... A máxima humilhação era a camisola verde e a nudez. Estava tudo acabado. Todos já sabiam que Alcione, a estrela, era Alcione o estrela.

Acerca da cama estava Altiva, segurando a peruca loira feito o fizesse a uma divindade. Quando a viu despertar seus olhos se encheram de lágrimas e ela disse: “Eu disse, não disse? Eu avisei: a bala, bi! A bala!”

E Alcione, remoendo um humor do cão limitou-se a responder: “Cala a boca, Osvaldo!”.

CONTOS NOTURNOS


AURORA

Aurora, esse era seu nome. Não bastasse ser o que era e ainda aquilo, carregar um nome eternamente amanhecendo. Justo ela, lunar, atrelada ancestralmente aos mistérios comuns à noite e às mulheres, padecia sob o signo, sob o destino inaceitável de amanhecer, de luzir, de fazer com que a existência brilhasse.

Caixa de supermercado. Dando números à fome, aos desejos e precisões alheios, ensacando-os sucessivamente na medida em que deixava de ser ela para que o dia a devorava, clareando demais.

Dois pacotes de arroz, três garrafas de vinagre, um quilo de sal, o troco da senhora apressada (a senhora teria cinquenta centavos? Nunca tinham). E assim. Encolhida no guichê, cabelos presos, menor do que realmente era.

Riam-se dela. Pelo nome, pela aparência longa e sem jeito dentro do uniforme. As colegas de check-out cochichavam nos vestiários e os clientes não resistiam a uma inspeção detida em seu crachá. Olhavam para o lado e apertavam os cantos da boca, tentando prender a surpresa, contudo ela sabia (deveras habituada), mesmo porque mal a olhavam na hora de pagar as compras e, tantas vezes, eles mesmos se apressavam em colocar os objetos nas sacolas para saírem esquivos e descontar a gargalhada antes mesmo de cruzarem a porta.

Aurora nada dizia. Apenas sentia noites conturbadas sacudirem-lhe a alma, e aqueles risos eram tormentas marinhas, adernando-lhe os barcos da estima e da beleza. Como se a cada cochicho, a cada gargalhada contida também lhe embaçassem o espelho e, por isso, ela se tornasse, além de andrógina, feia, manchada e digna de pena.

Ao fim do turno voltava a ser; o ocaso, o poente. Vencia à pé os sete quilômetros que a separavam de casa. (Necessidade). Necessidade de que a noite se assentasse sobre a pele de seu rosto, sobre seus braços, que falasse com ela sem se rir. (Necessidade de guardar uns trocados para os cabelos, para fazê-los, algum dia, de se admirar).

Tão logo amanhecia Aurora murchava. Esperavam-na os olhares, os não ditos, os gestos contidos. E mesmo os que não a tinham como destino, chama-os para si, porque no fundo, lá no fundo, era mais fácil suportar a certeza do que intentar contra dúvida. Resignada, um produto após o outro, um cliente após o outro, enfrentava-os como o fazia à luz. Até que...

Até que o novo gerente fez o que ninguém tivera coragem. Riu-se. Riu-se de verdade. Tentou se desculpar, bom que se diga, se retratar sem muito esforço. “É que...” Iniciou alguma explicação. “Eu sei, o nome é engraçado para mim, não é?” E foi embora, contrariada por ser tão solar, tão amanhecida, tão humilhantemente luzidia, sendo noturna como era.

Depois de caminhar as horas que lhe separavam do anoitecer e de ter coroado o rosto e a vergonha com o fel ácido das lágrimas, decidiu-se secretamente e fez.

Tarde da noite voltou ao supermercado. Outra. Núbia. Soltos por primeira vez, os cabelos coroavam-lhe a vontade irresignável. Volumosos e desconcertantes como não poderiam ser. E ao cruzar a porta fez cair o vestido. Lábios rubros e olhos firmes, seios miúdos e belos, curvas irreveladas. Caminhou até a sala do gerente. As luzes brancas lembravam uma lua artificial quando estendidas em véu leitoso sobre a pele desprotegida.

Foi devagar. Nua. Atravessou a porta para lhe dizer que não voltaria mais. Ele não respondeu. Admirou-a apenas. Silenciosamente e sem conseguir sorrir. As colegas do turno da noite também não riram nem cochicharam ao se depararem com o azeviche inteiro de sua tez e com a beleza secretamente descomposta.

Dormiu em paz.

A manhã seguinte foi negra, coberta de nuvens crespas, assim como negra, nigérrima, era sua pele e crespos os seus cabelos. Não veio o dia, o sol não despertou, não raiou a aurora, porque, naquele dia, Aurora desistiu de brilhar.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

CONTOS NOTURNOS


AMA DE LEITE

No início teriam sido bolinhos de coco. E ela os fazia tão bem, tão bem os bolinava que eles suavam entre as palmas de suas mãos até ficarem redondos, lisos e sensuais. (E ele os comia com mais paixão que a ela mesma).

Mas naquele dia algo não dera certo (ou dera certo demais). Foi no dia seguinte, na manhã em que seu homem fixo deixou sobre o criado-mudo dois tostões além (decerto para comprar o adeus). Saíra com passos mansos, juntando roupas (provas do amor urgente, semanal e clandestino), enquanto ela fingia dormir.

De manhã cedo o sol ardera descomunal pela janela, manchando de dourado suas órbitas e mesmo as olheiras negras das noites varadas. Estava ainda cansada, exausta de satisfazê-lo, de satisfazer a todos quantos pudessem comprá-la. Foi então que leu o que ele lhe deixara embaixo das cédulas. Se as palavras fossem capazes de refletir, refletiriam lodo ao invés da luz cegante.

Calma e ainda suja, e ainda lambuzada, e ainda faminta, foi ter com seus ingredientes enquanto remoía as frases lidas. Juntou-os no fundo da bacia e os foi mexendo delicadamente, depois com força, depois com as tripas reviradas, depois com os restos de si mesma, até deixá-los uniformemente pastosos.

Nalgum momento o branco se foi corando, tornando-se teáceo, pétala, por último rosado. Intrigou-se com o tom dos outrora branquíssimos bolinhos e não se deu por vencida, fincou dedos entre as pernas, por dentro da calcinha para investigar-se, ver se sobras dele vazavam junto das suas, (a mãe lhe houvera dito, isso muito antigamente, que não se devia cozer durante as regras, especialmente comidas brancas, porque essas se tingiam facialmente), mas não. Os dedos nada revelaram. Voltou, pois, a mexer, a sovar, a dar pancadas na massa rosa até obter-lhe a desejada consistência.

Somente enquanto os modelava é que sentiu. Da ponta do queixo precipitou-se-lhe sobre a mão uma gota vermelha. E ela percebeu com o pulso, deslizando-o pelo rosto. Antes os olhos vazavam. Naquele momento o rosto inteiro, o espírito, cada célula. Vazava, porque a cabeça estava partida, o coração pulsava últimos segundos nas pontas dos dedos e a alma sangrava pelo nariz, sujando a massa antes de esta ir ao forno.

Não se abateu. Borrou-se escorada na pia, maquiagem para a hora, largada sobre os azulejos frios da manhã, assistindo estática os bolinhos assarem.

Comeu-os, mais tarde, na tentativa inútil de que a alma voltasse ao seu lugar, mas no compartimento secreto onde antes ela houvera habitado não existia lugar para destroços. O coco e o açúcar se instalaram por lá, corrompendo-lhe todas as glândulas, dando vida a canaviais e a coqueirais sem fim.

Desde aquele dia seus amantes de aluguel passaram a amá-la mais e mais. Como mulher, como dona, como posse e latifúndio, porque ela lhes dava carnes tenras e leite de coco açucarado, direto dos seios e da alma (mas não amor, amor nunca mais).

CONTOS NOTURNOS


TRIUNFANTE!

(Pois bem... Tem de ser breve. Como algum angustiado que respira só até o peito. O ar não desce, portanto é urgente. A urgência é boa. Como uma vingança para dentro. Mesmo que desça somente até o peito)...

Descendo o elevador, somente dezoito andares. Como se a vida descesse até o fundo, muito mais rápida que o próprio peso de um elevador caindo; elevador que não tivesse cabo, não tivesse contrapeso, tivesse gente, somente gente dentro.

Antes de adentrá-lo ela olhou para dentro, como sempre fazia. Tinha medo de não o encontrar. Cair era o medo maior. Entrou. Apertou o último botão. Ofegava. Arfava mesmo. Quase não conseguia arrebanhar os poucos centímetros cúbicos do oxigênio de que precisava para continuar viva. As mãos manchadas de um rubro cintilante, ainda morno, pintando os botões iluminados daquela caixa. (As mãos vermelhas).

Parou dois andares abaixo. Alguém chamara o elevador. Quem quer que fosse, não entrou. Continuou a descida. O abdômen doía muito. Doía e pingava. Gotejava.

Olhou para baixo, para os próprios pés, a tempo de ver as pernas brancas listradas de vermelho. As unhas do pé direito com pequenas poças nos cantos encravados.

(O elevador descendo). Menos de dez andares, e o espelho olhando de volta. (Espelhos em elevador permitem à claustrofobia a fantasia de respirar, pensou). No espelho, ela. Lânguida, branca até. Pernas longas, finas, listradas e nuas. Nua dos pés à genitália. Nua a ponto de assustar uma empregada doméstica que subiria no oitavo andar. (Gritou e correu a infeliz). Uma velha senhora. Possivelmente ficara horrorizada com sua nudez tingida.

Apertou para que a porta se fechasse e cortasse o grito ao meio. O resto dele ficou oco, do lado de fora. E o elevador descia ainda, para algum lugar, lento e constante e cotidiano.

Correu as mãos úmidas pelos longos cabelos. Tão macios àquela hora da manhã. Ainda desfeitos... Puxados desde a nuca, doendo desde a raiz, desde os ossos do crânio.

De repente ouviu meias frases, pedaços que se esgueiravam para dentro entre um andar e outro. Restavam apenas cinco andares. (Sabia! Sabia, porque ali moravam crianças, e as crianças detinham o timbre correto da música que penetra elevadores). Apalpou no ventre o lábio rosado, recém-aberto, este lhe sorriu na altura do fígado, cuspindo seu vermelho inteior. Enfiou o dedo e depois outro. Hunnnf. Superficial? Levaria doze a quinze pontos. Nada além. Aliás, cicatrizes. (Mais uma. Menos uma). A última...

Quase lá. Quase no fundo. Quase de volta ao chão. Constrangeu-se, ainda de arma em punho. (Descarregada e feliz). Seis balas no peito. Seis tiros certeiros. (Não, um não!). Um cortou-lhe o dedo e arrancou a aliança que ela lhe dera. Cinco tiros no peito. Um não.

Então o elevador parou. Desceu devagar, distraída, e caminhou... (O térreo não estava. Inexistia). Não havia chão, só a vida, com o ventre rasgado à faca feito o seu. Caiu para ela... Dezoito andares, dezoito anos perdidos. Nua e lívida, mas triunfante.

(Conto escrito em Cuiabá-MT, em 05 de setembro de 2005, entre 23h10 e 23h53).

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

CRÔNICAS TARDIAS


A PANACÉIA

Dissera que não precisava daquilo. Deveria ficar distante algum tempo da escravidão auto-imposta por seus limites cotidianos. E foi ficando, ficando distante, tão distante que já não distinguia os próprios ossos dos vergalhões que sustentavam os edifícios ao largo. Tão distante que era capaz de confundir carne e concreto, veias e canos, pele e azulejos.

Acordou trinta e tantos dias depois. Corpo esquelético. Sua alma estava magra e lívida e vazia. Pareceu-lhe que houvera devorado um enxame de vespas e todas elas lhe picavam de uma só vez o estômago e os sentidos.

Sabia que não duraria muito. Rapidamente sucumbiriam os pilares, os alicerces afundariam na areia fofa das superficialidades e estaria entregue à ruína e à maresia; se derreteria lentamente até ser um pedaço de lembrança, depois uma incerteza de existência, uma dúvida, depois nada.

Alegre, a seu modo, compreendendo que o mofo se alojara permanentemente em suas entranhas de forma irreparável, caminhou até a cozinha. (Nove horas da manhã). Vasculhou o tinha e o que não tinha e, diante de tudo, de todas as forças, das aberrações universais e do inevitável desfecho dos dias, picou fatias de abacaxi dentro de um copo largo.

Espremeu fortemente os pedaços. Esmagou-os. Assim também o fez com os medos e com as angústias e com as dúvidas secretas de existir. Tudo fatiado, esmagado, líquido.

Seis pedras de gelo para que a carne não estragasse. Um tapa no pernilongo que lhe rondava a nuca. Goles generosos de gim sobre a geléia de abacaxi e alma e foi beber naquela hora. Encheu as fuças.

O álcool forte lhe devolveu a ilusão. Bebeu como nunca, bebeu como sempre. Tivesse dois quilos de sal grosso teria curtido todos os sentidos e os preservado pelos eternos anos que lhe restavam, mas não. Era só o gim.

Pegou mais um. Outro e outro. Ao meio dia estava completamente em paz. Alma curada, corpo inerte e coração batendo a seis por hora. Poderia viver mais algumas horas. O miraculoso espírito etílico reinando na quietude. Sombrio, bruto, acolhedor. Como um pai ausente, devotando o primeiro carinho à cria depois de ela, erada, ter-lhe mostrado os dentes.

O gim é a panacéia. A salvação da humanidade, constatou. Só ele liberta, só ele escraviza, só ele é capaz de levar a alma ao limite da pele e fazê-la arder, sem curativos, sem remédio, sem salvação.

Tomou um outro... Ah, precisava viver mais algum tempo.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

CRÔNICA DO DIA.


CARTA AO SENADO

Senhores Senadores,

A manada está inquieta e já se aglomera próxima à cerca do curral. Está chegando a hora de deixarmos de ser gado e nos tornarmos aquilo que verdadeiramente somos: gente.

Muito embora alguns dos senhores ainda nos considerem reses cativas de seus currais e acreditem que um mísero bocado de ração e um açude de água barrenta sejam suficientes para nos manter de focinhos baixos, dóceis e servis, o gado de vossas excelências foi contaminado pelo vírus da raiva; escuma a boca, range os dentes, bufa e raspa os cascos contra o piso enlameado do mangueiro.

Ao longo dos anos o morcego hematófago nos vem sugando, se alimentando de nossas virtudes, confiança e paciência, entretanto esse mesmo animal – também apelidado de corrupção, desmando, falta de ética e descaso com a coisa pública – conseguiu, por fim, nos infectar irremediavelmente.

Somos um povo pacífico, senhores, por isso mesmo temos sido tomados por ovelhas, por gado manso, descartável, destinado ao abate; contudo não se deve confundir nossa atitude cordata com resignação permanente.

A paz, da qual alguns dos senhores se aproveitam para nos conduzir, feito espectadores silenciosos, ao abate inevitável do caráter, da moral e do respeito, cede seu posto de comando a um outro sentimento igualmente forte: a revolta.

Mas não temam ainda, senhores, porque não haverá um levante de bichos enfurecidos – armas em punho -; o que o Brasil está prestes a testemunhar é o rompimento das coleiras, a destruição das mordaças, a marcha estrondosa dos pés rachados e o som estridente dos mugidos que, de tamanha força, se transformarão naquilo que alguns dos senhores ignoram: voz.

A voz das casas se espalhando pelas ruas, tomando cidades, se alastrando pelo interior do país até os mais remotos confins. Ecoando nos quebra-mares do litoral, na caatinga, nas vidraças dos prédios, nos campos recém-plantados, nas fábricas, nas escolas, nos céus do planalto e, por fim, nas urnas.

Voltem à carta magna. Nela encontrarão o mandamento primordial. “Todo o poder emana do povo e para o povo”. Os senhores não são donos de absolutamente nada a não ser de vossa faculdade de decisão que, como temos observado com grande vergonha, converge inequivocamente para interesses pessoais, partidários, escusos, equivocados e completamente dissociados das necessidades do povo brasileiro.

Não se enganem. A mancha de descrédito que macula todas as instituições públicas, legando a elas a pecha – por vezes injusta - de corruptas e ineficientes, é produto do caldo espesso de acordos, negociatas, manobras e impunidade que vem sendo cozinhado ao longo dos anos com a conivência – ou participação ativa – de muitos dos senhores. Em síntese, vossas atuações contribuem decisivamente para agravar a crise de credibilidade que afoga todo o serviço público do país.

Pesquisem, libertem seus ouvidos para além do séquito que os aplaude. O descrédito é crescente, os discursos não convencem, a suspeição impera e até mesmo aqueles – poucos – cujo comportamento tem se mostrado sério e reto, têm as barras de suas calças enlameadas pela nata de lodo que se eleva.

Observem o burburinho que se estabelece no curral. É gado virando gente, é povo virando cidadão, é cidadão se levantando feito devastadora onda. Somente os que conseguiram ouvi-la antecipadamente sobreviverão a ela.

Findo este preâmbulo, senhores, conclamamos aqueles cuja decência ainda não foi vencida por algum favorecimento ilícito a assumirem seus papéis de verdadeiros representantes do povo e a engrossaram a orquestra das vozes irresignáveis.

Ainda há tempo de dizerem não. Não aos atos secretos, não aos acordos políticos com fins duvidosos, não aos desmandos do poder, não à transformação dos poderes legislativos em ambientes sem leis, não à falta de ética e de decoro, não à proteção recíproca, não ao cenário circense que envergonha a toda a nação.

No dia 7 de setembro, às 17 horas, a manada romperá as cercas do curral e seu estouro será ouvido em todos os cantos do país. Seremos nós – os que alguns ainda consideram massa de manobra – gritando: Basta! Esse será o primeiro passo rumo a um país que mereça seu povo, que seja digno de quem diariamente o constrói.

A sabedoria popular diz que “o povo tem o governo que merece”. Estejam certos, merecemos mais.

Não se calem porque o povo não se calará. Nem agora, tampouco e principalmente nas urnas.

Geraldo Vandré e Theo de Barros escreveram, em idos, negros e turbulentos anos, uma *canção cujas notas sobreviveram ao tempo e ainda servem de aviso: “Porque gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente”.

Com gente é diferente!





(*"Disparada" - De Geraldo Vandré e Theo de Barros)

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

CRÔNICA DO DIA.


UMA “QUASE” RECRIAÇÃO DO UNIVERSO

“A lua rasga a cortina de nuvens com as mãos.
(Desesperada).
Porque o mar precisa dela”.

A visão do esforço me arrebatou. Havia sido um dia de “quases”. Quase esfriou, quase um vinho, quase recomecei a escrever o último volume da trilogia. Quase me empolguei; mas fui vencido.

Ao final, depois de ter posto ordem nos afazeres, de ter inventado uma distraçãozinha para o estômago, fui até a varanda e vi a cena.

Pensei ter me deparado com alguma cortina de linho muito antiga; tecido roto, esburacado pelo vento. No entanto eram nuvens. Nuvens brancas e longas, desde a cumeeira do céu até o rodapé do horizonte.

Estava escuro (assim como eu).

Então deu-se o milagre. Por vários pontos frágeis daquela espessa cortina, escapava a luz; descia até as águas lisas do mar, adiante de mim. Tudo muito bonito de se ver. A reinvenção do livro do Gênesis ou um plágio visual de “chão de estrelas”; escolhi a canção e a cantarolei sozinho enquanto a beleza me ardia: “a porta do barraco era sem trinco, e a lua furando nosso zinco, salpicava de estrelas nosso chão. E tu pisavas nos astros”... e parei, distraído.

Meu imenso teto cortinado de algodão, através do qual a lua se espremia e escapava para se atirar no mar... Ele precisava dela, assim como eu precisava daquela visão para encerrar o dia.

Não cheguei a vê-la, vi apenas as ilhas de brilho prateado espalhadas sobre a água. E então o livro do Gênesis me serviu: “o espírito de Deus pairava sobre as águas”. (Deveria ser).

E tudo o que havia sido quase passou a ser inteiro. Sem mistérios ou atropelos. Silenciosamente. (Graças ao esforço de uma lua que não desistiu).

terça-feira, 18 de agosto de 2009

CRÔNICA DO DIA.


L’AURORA

Eros Ramazzotti escreveu uma belíssima canção, para a qual Zizi Possi emprestou alma e paixão. A canção se chama “L’Aurora”, e durante muito tempo meu despertador matinal, minha aurora, foram as notas dessa música.

Ela me cava, se vai escorrendo por minhas veias feito um alucinógeno e me enche de melancolia. Num dos trechos (em tradução livre) diz o seguinte: “Aquilo que mora no fundo do coração não morre jamais.Se uma vez você acreditou, vai acreditar de novo. Se uma vez você acreditou de verdade, como eu acreditei, será, será a aurora”.

Antes de conhecer a tradução eu não entendia a razão de tanta melancolia, de tanta saudade; não conseguia atinar para as reminiscências nem lhes dar um corpo, uma forma ou um tempo. Hoje a compreendo claramente e ela me fala de minhas raízes, daquilo que sou por força dos genes, do amor e da família.

Fala-me de uma Itália que não conheço, mas que minha nona trouxe consigo quando de lá escapou da fome, imigrando, como muitos o fizeram, para se reconstruir no novo mundo e nele plantar seus sonhos desesperados.

Faz-me lembrar dessa velha nona em volta do fogão de lenha, fazendo requeijão caseiro e me deixando a panela de ferro cheinha de raspas crocantes para eu me deliciar; e do dia em que ela se foi, mesmo dia em que meu pai chorou feito criança, sentado no chão vermelho do alpendre, inconsolável, completamente desprotegido, completamente órfão.

Nem tudo o que se passa com nossa alma cabe em palavras, tampouco a saudade que carregamos cabe em imagens. A saudade é uma fotografia imprecisa, desbotada pelo tempo, mas nítida no íntimo de quem a carrega. Não carece de nada, apenas do papel amarelado onde, um dia, a vida reluziu, brilhou feito a aurora.

Melancolia e saudade não rimam com tristeza, e justamente por esse motivo é que a música não me dói; ela é doce por me permitir ultrapassar o véu dos anos e retornar, sempre que desejo, ao ponto onde tudo começou, ao sentimento original.

“Aquilo que mora no fundo do coração não morre jamais”. Eu acredito, acredito de verdade. É por isso que, por mais distante que esteja, minha alma permanece sentada no chão do alpendre, ao lado de meu pai, consolando-o, ainda que sem dizer uma única palavra.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

CRÔNICA DO DIA.


PÃO

O fermento biológico fresco, aquele de tabletes, quando misturado ao açúcar se transforma, abandona o aspecto árido e se entrega ao outro elemento, unindo-se a ele de forma a ser impossível separá-los; juntos dão origem a um caldo espesso, que é a base da receita.

A farinha entra em seguida. Deve ser peneirada para evitar que impurezas ou caroços comprometam a massa. Ela se deita sobre o leito líquido de fermento e açúcar e aguarda pacientemente que lhe banhem com um bocadinho de água morna. Água esta que, por sua vez, não pode e nem deve ser agressiva. Não tão quente de forma a escaldar os demais, nem tão fria a ponto de fazê-los se retraírem.

Depois pitadas de sal. Servirão para equilibrar a doçura e realçar seu encanto. Quando se pretende uma receita salgada, acrescenta-se um pouquinho mais, mas sem abandonar o açúcar inicial.

Por fim um fio de bom azeite. Um cordão de ouro derramado sobre a face alva da farinha; e então as mãos. No princípio movimentos delicados, até que tudo se una, se habitue, que todos os elementos se entreguem uns para os outros.

E quando se obtém uma massa homogênea é que o trabalho realmente começa. A sova, a força do rolo, do cilindro, a pressão e o peso empregados para comprimir a frágil e delicada mistura... A não mais poder se deve forçar, porque a compressão fortalece o composto, alisa a massa e a deixa pronta para ser modelada.

Uma vez que se a modele, bastar conservá-la em ambiente fechado, preferencialmente abafado, e esperar o que o milagre aconteça. Vai se agigantar e enfrentar o forno até se tornar uma outra coisa, muito distinta de todas as demais que outrora fora...

...Penso que viver é uma grande receita de pão. Com doçura se vai transformando as pedras em substâncias menos densas. A maturidade se encarrega de nos ensinar a peneirar, a aproveitar aquilo que é puro e genuíno e ao mesmo tempo nos apresenta à virtude da temperança. Arrefece o calor intenso da juventude e equilibra o frio excessivo das incertezas.

O sal é o elemento de contraste. As alternâncias entre sorte e revés, alegrias e desventuras. É o que nos mantém despertos e conscientes de que nada existe que seja perene - e caso existisse algo que o fosse, perderia o sentido em si mesmo. Ele nos ensina que somente as dicotomias são capazes de revelar as verdadeiras de existir.

A partir da prensagem das pequenas surpresas, dos riscos, do improviso cotidiano é que se obtém o azeite, combustível e lubrificante, que movimenta o carro dos dias e o impede de ranger, mesmo quando muito carregado.

O restante é o que é. Amassar, sovar, cilindrar, esperar. Dar forma ao que se quer, modelar com as mãos os próprios sonhos e submetê-los a altas temperaturas para que se tornem... Sonhos ou pão.

Quem não sonha jamais será capaz de compreender que, a exemplo da massa, a vida é uma grande mistura; uma mistura de ingredientes, esforço, espera e fogo.

Sonhar é tão importante quanto viver.

(O resto são formalidades; é o que não cresceu e, portanto, não irá ao forno).

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

CRÔNICA DO DIA.


ELA ME PEGOU E ME JOGOU NA CAMA

Ainda estou curtido pelo rescaldo de cansaço da noite passada. (Noite passada em branco, sem pregar o olho).

Mas o que dizer? Fui tomado por ela, dominado de um jeito que jamais pensei. Quando dei por mim estava estirado no colchão, completamente suado, exausto, exaurido até o último poro.

Encontrei-a pela manhã. Estava indo à padaria, comprar o pão para preparar meu café. Chovia um pouco e eu nem percebi, tamanha a pressa. Havia acordado à toda e feito a higiene bucal meio dormindo. Desci ainda quente, sentindo os lençóis atrás de mim como segunda pele. Duzentos metros depois, na porta da padaria, foi quando acordei de vez.

Peguei meus pães e virei no rastro (paguei também, mas isso está implícito), correndo para casa. Rua semidesértica, garoa aumentando a ponto de me esfriar... Eu ofegava. Próximo ao semáforo eu a senti chegando; enquanto esperava o verde ela se encostou em mim; nada disse, nada pediu; foi ficando, me agarrando ali mesmo, apalpando, pegando feito dona.

Depois disso o tempo passou a ser dela, de seus caprichos. Não comi direito, sequer fiz outra coisa que não fosse lhe dar atenção. Ficamos juntos o dia inteiro, mas não foi o bastante para satisfazer sua compulsão, seu voracidade.

À noite ela pulou sobre mim. Torceu meus músculos, me sugou, lambeu minhas energias e depositou brasas sob a minha pele. Dominou meu sono, se apossou de meus sentidos... Faltava-me o ar, falhavam-me as forças, meu suor molhava os travesseiros.

Quando mais lhe dava, mais ela pedia. Exigia. Minha noite entregue a ela. Fui seu escravo.

Acordei – se é que dormi por alguns minutos - com dores por todo o corpo; garganta arranhando. A febre durou até o primeiro comprimido de paracetamol. Olhos ainda ardentes...

Gripe desgraçada.

Hoje eu estou preparado. Trouxe da farmácia munição de matar elefante, e se ela se encostar em mim eu a derrubo, ah se derrubo, assim como ela fez comigo... Pode vir a gripe do frango, do gato, do cachorro, da vaca, do porco... Pode vir a fazenda inteira se quiser... Comigo não! Acaso sou homem de me amarrar? Comigo é uma noite e olhe lá...

O quê? No que é que você estava pensando? (A gente não pode nem ficar doente que o povo já pensa besteira)...

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

CRÔNICA DO DIA.


CONSULTOR, ESPECIALISTA EM FAXINEIRAS OFERECE SEUS SERVIÇOS

Em tempos de crise, em que o emprego está cada vez mais difícil e - em oposição - a modernidade e a informação possibilitam a invenção das profissões mais curiosas criei, a partir de minha experiência, o posto de “consultor especialista em faxineiras”. Segue meu currículo:

A primeira, ainda em Cuiabá, foi Mirtes. Não era faxineira, só lavava e passava (mas conta como experiência). Depois foi Linda, a troncudinha intrometida, especialista em carne moída com batatas. Durou o tempo do enjôo da comida (teria durado, não tivesse levado um seu amigo para experimentar minha cama – sim, a minha cama. (Infeliz!) - em uma de suas tardes de solidão).

Dona Helena foi a seguinte. Fiz tanta propaganda que foi coopitada por uma colega de trabalho, que se apoderou dela e a transformou em secretária fixa. Paciência. Deve ter sido melhor para ela, já para mim (...).

Lara, a seguinte, (o nome eu não era esse, mas vou chamar de Lara porque combina com larápia) fazia a feira na minha despensa e passeava com meus vale-transportes. A criatura era tão magra, mas tão magra, que se tivesse me pedido eu teria dado a despensa inteira (os vale-transportes não. Eu precisava deles).

Inaugurando o quesito irmãs, Lena, a muda que não era (é, não era muda, mas também não falava. Dá para entender?) e sua irmã Cirleide. A segunda – que falava mais do que fazia - queria ser faxineira de meio período, contudo a diária era inteira. É mole? Acha que eu aguentei? Olha para a minha cara e diz... Lena foi ser fixa. (Me deu um frio na barriga; a moda estava começando a pegar).

Rodaram a irmãs e veio Divina. O nome revela tudo. Ô mulherzinha maravilhosa. Fazia agradinhos caseiros, bolos de caixinha e tal. Se topasse a teria levado comigo para Fortaleza.

Na capital cearense conheci Mônica. Jovem ainda, e muito coerente com aquilo que dizia. Imagine que ela fazia almoço para nós. Quase na hora da fome ela disparava de onde estivesse: “Posso torrar o bife?” Da primeira vez aquilo me soou estranho, mas entendi quando me sentei a mesa. Como expliquei, levava muito a sério suas palavras. Torrar era torrar mesmo, e o tal bife serviria até para sola de sapato ou revestimento de bolsa. (Acho que tinha medo do mal da vaca louca)...

Como o destino me levou rapidamente para outras paragens, aportei em Ribeirão Preto, onde a lista cresceu a valer. Lá veio a segunda leva de irmãs. Dona Edna e sua suplente.

A primeira, faxineira de hotel, registrada em carteira e tudo; era uma máquina. Meu Deus, dava para comer no chão que ela limpava. O único problema é que sua faxina durava quase 22 horas. Dizia assim: “não se preocupe que esse é o meu ritmo”. Caramba, se me descuidasse ela dormiria em casa... Logo se via que um relacionamento pegajoso como aquele não teria bom futuro. Com a suplente foi a mesma coisa. Veio duas ou três vezes, e me abandonou... (Me trocou por uma vassoura qualquer).

Em terras ribeirão-pretanas bati meu recorde. Juntou-se a ela a cunhada do porteiro, metida a celetista, sindicalista, sei lá, com jornada das 8h00 às 17h00, duas horas de almoço e dane-se o resto. (Pois se era justamente para o resto que eu precisava dela)... Aumentando o escrete Dona Maria “quebra vasos”, cuja alcunha justifica a única faxina que me fez; Sônia do Prato (não a apelidei de quebra pratos porque seria injusto com Dona Maria), que com mira certeira me livrou de um antigo prato decorativo do qual gostava às pampas (mais até do que gostei dela); Creuza, Izabel e Beatriz – pareceu-me um complô – que me avisaram por telefone (cada uma em sua emana, é óbvio) que não voltariam, estavam em outra (casa, eu acho)... E assim, sem maiores explicações, deixaram-me com o coração quebrado e, Deus me valha, com os copos e a louça restantes ainda inteiros.

Pensa que acabou? Ainda não!

Com Ana das Dores tive algum sossego, embora ela mesma não tivesse nenhum. Chamei-a de Ana das Dores, porque toda semana ela me aparecia com uma dor diferente. Quase me ofereci para fazer faxina em seu lugar... Sei lá, pensei em ajudar a coitada; sentimento humano, caridade, sabe?

A segunda Izabel, que em nada se parecia à primeira, tentou dar o truque dizendo que tinha proposta melhor etc... Conversa mole, queria inflacionar o preço do serviço... Manteve a mentira e aceitou a proposta que não existia (foi ser fixa na casa dela).

Estava eu novamente na mão (literalmente na mão; mão na pia, no tanque, no ferro de passar). Até que encontrei Rosânea. Outra divina. Cozinhava para gordo nenhum botar defeito. Tão querida que foi promovida a secretária fixa (me vinguei, aderi à moda), permanecendo comigo enquanto estive por aquelas bandas.

Já no Recife a primeira experiência foi aterrorizante. Busquei auxílio num flat (fiz logo a correlação com Ribeirão Preto: faxineira de hotel, profissional etc. etc), mas quê, a mulher era um demônio surrealista. Em um único dia de trabalho conseguiu pintar metade de minhas paredes novas com óleo de peroba. Não acredita? Venha ver, algumas marcas não saíram até hoje.

Dessa trágica experiência voltei para o secretariado fixo, o qual me serviu (assim, assim) durante um ano.

Recentemente tornei ao ramo da faxina semanal através de Mocinha. Boa de fazer gosto. Com essa eu me ajeito, pensei... Nova decepção.

Ligou-me hoje pela manhã dizendo que a patroa - a de um outro serviço - a chamou (em seu dia de folga e meu dia de limpeza) e fez ameaças para que trabalhasse em sua folga. É, ameaça. O negócio aqui é feio... E quem ficou com as vassouras na mão?

Não me dei por vencido. Acionei meu net-work (no caso uma outra moça que presta serviços domésticos no prédio vizinho, a qual tive a sorte de conhecer num passeio de elevador) e já tenho outra engatilhada.

Amanhã vem a Lili.

Ai, Lili, pelo amor de Deus, seja boa, seja fiel. Senão você vai ferrar com meu currículo.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

CRÔNICA DO DIA.


A LIÇÃO DO ESTILINGUE

Recorro ao passado sempre que preciso encontrar caminhos. Embora saiba que nada do que nele está escrito possa ser alterado, folheio-o feito o fizesse ao livro dos segredos. (Não que tente encontrar algum segredo, mesmo porque todos os versos que desfilam por suas linhas são meus velhos conhecidos).

E o passado me acode. Tem alguma sabedoria e uma estranha forma de se entregar. Muitas vezes não revela de imediato a página procurada e, outras, tenta ainda ocultá-la. Porém, no fim das contas se dá, se rende, abre as pernas, sua alma para mim...Trocamos sopapos, carícias, depois repousamos, um para cada lado, sem nos olhar nos olhos.

Essa nossa estranha ligação demorou para fazer sentido...

Se me orgulho de alguma coisa (e não tenho o hábito da soberba) é de não me deixar amarrar por saudosismos, tampouco pela felicidade ou pelos revezes vividos. Contudo, quando o namoro com o passado revelou suas razões compreendi que não havia como recuar.

Apesar de ser um homem casado com o presente, um otimista de carreira e um lascivo amante dos dias futuros, o passado é minha única posse. Meu livreiro, minha bibliotecária, a governanta, o mordomo de meu domínio interior. É ele que se incumbe de pôr ordem no que presta, queimar o que deve ser esquecido e de resgatar do entulho o que precisa ser lembrado.

Assim o fez com a página mais recente que me abriu. Antiga. Desdobrou-a de onde estava para me mostrar. Tinha eu por volta de sete anos e, como todos os guris das bandas da 13 linha, vez ou outra me metia em caçadas de passarinho (se bem que não se pode chamar aquilo de caçada, porque 99,99 (dízima periódica) % das vezes dava em nada), passando tardes e mais tardes a espreita de qualquer bicho que voasse para, ao fim da tocaia, tornar de mãos vazias.

Mas um dia foi diferente. Espreitando embaixo do abacateiro vi pousarem dois pássaros de plumagem castanha. Felizes de fazer gosto. Mirei entre eles e mandei bala (no caso, bola, de gude); por sorte (?) o tiro foi fatal, derrubando um. Corri feito desatinado – sabujo dos bons – alcançar a caça que ainda se debatia. Tempo de vê-la suspirar...

Não dá para mentir, foi quase um gozo, quase uma bola de futebol nova, quase uma nota máxima no boletim. Estava em êxtase com meu primeiro passarinho morto...

Dia seguinte, ainda animado, voltei ao abacateiro. O outro pássaro estava por lá, repicando entre os galhos como quem procurasse o que não sabia. Quando voou mais para o alto entendi do que se tratava. Assentado ao lado da barroca, da casa cujas paredes estavam pelo meio, a ave esperava pelo barro, pelo companheiro que não voltaria.

Aposentei precocemente meu estilingue.

O passado me trouxe essa lauda empoeirada e muito amarela. Eis o motivo de meu desvelo para com o esse tempo: sua generosa compreensão de minhas necessidades.

Veio me lembrar que - assim como os passarinhos que vivem pelo alimento do dia - o meu amor e a história de barro, gravetos, sonhos e cumplicidade que temos construído ao longo dos anos, são as verdadeiras razões para que eu viva o hoje e espere pacientemente o nascer da próxima manhã (uma de cada vez, até que Deus - menino caçador - resolva me estilingar).

terça-feira, 11 de agosto de 2009

CRÔNICA DO DIA.


DICIONÁRIO DE SILÊNCIOS

Cruzou-me a vista um homem em sua bicicleta cargueira. O vi treliçado, dividido, riscado verticalmente pelos gradis da varanda, qual imagem, silhueta que usasse longo pijama listrado, e este pijama se fosse alongando para antes e além dela.

Vinha devagar pela manhã - como pareceu-me ser toda a vida nessa manhã, vagarosa - pedalando delicadamente e sem esforço. Segui-o com os olhos, fazendo-os pesarem no compartimento de carga, dentro do caixote verde-musgo que ele trazia na dianteira de seu veículo.

Tão de leve o olhei que sequer notou os quilos curiosos de meu olhar; tampouco se desequilibrou ou parou para ajeitá-lo entre os poucos pertences que carregava. Foi seguindo displicente, entrecortado, vez ou outra, pelas copas das árvores e troncos dos coqueiros.

Quis imaginar alguma novidade que ele pudesse conduzir. Um peixe grande para o almoço de logo mais, uma coleção de discos antigos com capas engraçadas, um carregamento de pinhas, seis maços de pregos, duas dúzias de ovos de codorna, quatro braços e duas pernas de manequins mutilados, para transformá-los em nova divindade... Meus olhos entre os objetos, coisificados.

Pedalou até levar sua vida para longe de meu continente, deixou para trás as listras que o emolduravam e se perdeu sob a sete-copas da calçada (que, a propósito, exibia-se toda enfeitada, com lindas folhas alaranjadas pontilhado-lhe a copa verde feito fagulhas enormes).

Carregou consigo a calma, para ser reciclada em alguma usina...

Voltei para dentro do apartamento onde o silêncio condimentava o ar e preparava o cozimento da manhã. Só as imagens restavam. Elas e o murmúrio do vento nas frestas da janela, soprando brasas e fazendo arder o grande caldeirão no qual seriam fervidas todas as palavras, até derreterem completamente.

Borbulha, agora, o silêncio... Tem cheiro de lírios, de eternidade...

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

CRÔNICA DO DIA.


O DEUS DO MOFO

Pêlos nas reentrâncias do móvel. Entre o braço e o assento do sofá se haviam juntado resíduos imemoriais. O homem descobriu por acaso aquele estranho ninho - por acaso - quando enfiou sua mão lenta e indiscretamente pelas intimidades do móvel. Vulvazinha de tecido, cabeludinha, repleta de antiguidade como ele mesmo.

Já o vinham debelando os sons do dia; ensaiava intimamente uma reação qualquer quando foi vencido pelo inusitado e estacou. Recolheu-se deveras quieto observando a criação. (Deus se escondia nas grotas).

Correram séculos, segundos talvez, até que se deu conta de que aquilo representava a verdade em sua mais sublime face. Refletiu até encontrar palavras no meio do silêncio. Poliu-as com cuidado antes de depositá-las onde haviam dormido, porque não queria que despertassem empoeiradas; e as palavras, quando acordaram, sozinhas, eram curtas e simples.

A vida tratara de arranjar meios para esconder os cabelos caídos, os fios do tecido roto que vestira desde a juventude e a pele que, por vontade própria, decidira se desgrudar do corpo pela abrasão dos anos.

Que conclusão, afinal, acudira-o naqueles bravos instantes? Qual misteriosa verdade lhe fora posta diante dos olhos? Esperou um pouco até ter força para dizê-la, mas a disse, e ela era assim:

“A memória é feita de resíduos, de fios, cascas e cabelos. Tão orgânicos e férteis se vão tornando que, pela ação do mofo e da umidade, alguns fedem. Outros, graças ao Deus das coisas pequenas, resistem à decomposição, brotam a partir desta e florescem vivos. Belos, tênues e quebradiços, feito cogumelos alaranjados enfeitando o tronco que apodrece. É assim a memória: um tronco se perdendo entre as árvores do presente e os brotos do futuro; mas resistindo bravamente, porque sem esterco o novo tempo não tem forças para nascer”.

Foi o que disse a si mesmo como uma oração...

(Depois juntou os pêlos das intimidades do móvel e a deixou depiladinha, para que o bom Deus das cavidades a pudesse novamente emprenhar).

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

CRÔNICA DO DIA.


O HOMEM DO TELHADO

Vista de cima a casa se mostra uma fronteira. Sobre a cumeeira se equilibra o homem, e de cada lado dessa fronteira se apresentam os territórios. O primeiro, esqueleto de caibros e ripas desnudas, reserva em pontos distintos diversas pilhas de telhas. Oposto a este está o outro, regular e calmo, totalmente protegido pelos pedaços de barro; cobertura que é também roupa, lençol de escamas se estendendo para baixo.

Com o homem parado como está, equilibrando-se bem ao centro, não se pode dizer o que se passa. É apenas um homem sobre um telhado.

A imagem congelada é mesmo um mistério; igualmente, uma ousadia. Mistério que leva à dúvida e ousadia que põe pernas onde respostas não crescem. Desse um passo para um lado, se movesse lentamente no outro sentido, talvez entregasse uma pista, deixasse escapar um sinal. Mas ele é e está parado, e permanece, como também ficará, assistindo - imóvel.

Não se pode dizer-lhe a idade, tampouco ouvir-lhe a voz, pois é seu momento de descanso. E enquanto descansa tudo cessa à sua volta, tudo espera e recua, temendo que caia, sob o golpe do menor movimento.

E então, quem o vir em seu momento paralisado há de carregar no ventre o feto da dúvida - embrião gelado – ou mesmo uma célula de incompreensão, porque um homem estático, firme sobre um telhado, reserva em si um volume muito maior de perguntas que de respostas.

O transeunte que segue. (O tempo se dissolve); aquele jamais descobrirá.

O que faz o homem do telhado? Cobre ou destelha? Constrói ou desmonta? Protege ou revela as estranhas, expõe fragilidades?

Qualquer que seja a resposta (coisa muito íntima) só se revelará no movimento seguinte – irremediável -, quando não mais restarem os meios, tampouco o tempo para detê-lo.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

CRÔNICA DO DIA.


LIBERDADE, LIBERDADE, ABRE AS ASAS…

Quando escrevi “Leito de Procusto” o fiz com um propósito: exercitar a contenção, a economia e a forma. De tanto refletir sobre a beleza – que às vezes não precisa de muito para se manifestar – decidi “inventar” uma fórmula onde minha escrita pudesse se conter, se engaiolar sem abandonar o significado, sem deixar de dizer o que pretendia.

A tal fórmula é muito simples: são 20 linhas em word, na formatação básica do programa (sem trapaça e sem extensão de margem). No blog, em razão do espaço pré-determinado, isso dá por volta de 25 linhas.

A tarefa foi extremamente produtiva. Trabalho de jardineiro. Muitas vezes achei (modestamente) que um texto estava impecável mas, ao “jogar na fórmula” passavam duas, três linhas... Olhava consternado para ele. Olhava sem saber o que podar, contudo, se fazia necessário. Então pegava a tesoura e ia cortando ramos aqui e ali, tirando folhas-letras.

Mostrou-se uma proposta interessante, hercúlea e também muito libertadora. Fez-me enxergar que a cereja do bolo pode fazer a diferença e, outras vezes (especialmente quando não se tem nem se pode usar cereja), o que tem de estar verdadeiramente bom é a massa, senão desanda o glacê e não há cereja que o salve... Aprendi. Era o que buscava.

Agora a liberdade. Romper com o formato (mas só depois dessa crônica).

CRÔNICAS PORCINAS.


NÃO VOU TOCAR NO ASSUNTO…

Foram arquivadas as 11 denúncias contra o antigo rei do Maranhão (atual rei do Amapá). Cheiro de pizza recendendo. O pior é que se trata de pizza estragada, assada há mais de quinze dias (de massa pré-recesso, mofada antes mesmo de ir ao forno). Podre como o congresso. De Alicce.

Bola para a frente, porque a minha cota de crônica política eu a dei quando tinha por volta de vinte anos; muita paixão, muita esperança e pouco juízo. Quero falar disso não! Me enjoa, entristece e contribui para que me sinta menos inteligente, mais amargo, ácido e descrente.

Falar de quê? Da dicotomia esperança x vergonha na cara. Sim, porque manter a esperança política é, antes de tudo, um ato de desprezo à vergonha na cara. Gostaria de dizer que não, mas os fatos me contrariam.

Olha que eu sou um otimista, mas um otimista envergonhado. Com receio de assitir televisão e saber mais, enfiar o pé na jaca, ou melhor, na lama, no charco. Ver, saber me constrange, parece até que compactuo.

Havia prometido que não falaria disso, que não me permitiria uma linha a esse respeito, porque intimamente eu já sabia como iria terminar. Não foi a primeira nem será a última vez que o lamaçal, a imundice inunda o país. Hoje somos um povo digno de pena, um bando de náufragos boiando num mar de peixe podre, esperando pelo próximo jogo da seleção brasileira ou pela bolsa-fome da vez. E eleição, claro. Pão, circo e engodo.