"PORQUE NARCISO ACHA FEIO O QUE NÃO É ESPELHO" (Caetano Veloso).

sábado, 31 de julho de 2010

POEMAS PERDIDOS NO TEMPO


UM ALGODOAL

A pluma explodiu neve no mato quente.
Explodiu branco na terra vermelha,
Explodiu pluma no coração seco da infância.

Era noite...
A imagem do algodoal se encolheu por trinta anos
E foi tomar pela mão
O menino que descansava sobre as sacarias,
Olhando o tempo,
Tentando prever o futuro...
(Foi tomá-lo pela mão).

O menino olhou assustado para a roça.
Ela iria desaparecer.
Ele iria desaparecer.
Só restaria, na noite dos anos,
Um campo incendiado de branco,
Explodindo seu macio leite
Pela eternidade dele (o menino).

Explodiram brancas lágrimas em seus olhos infantis
E ele chorou algodão.


sexta-feira, 30 de julho de 2010

POEMAS DE VIAGENS


A PRIMEIRA ESTRELA

Debuta
A alva estrela
Nas coxas da tarde

Tatua
A mão macia
Sob o vestido corado

Lambe-a.
A tarde se arrepia,
Escu-ruboresce.

Dá-se
Deixa-se
Estrila entre os lençóis do horizonte
Tremeluz.

Envergonhada
Anoitece.

E a estrela tesa
Fêmea
Brilha sobre ela
Fêmea

Gemem
Via-lácteas.


De Chapecó-SC.

terça-feira, 27 de julho de 2010

POEMAS RECÉM-NASCIDOS


O CERCO AO POEMA

Eu persigo o poema
De carne e osso,
Que possa ser esfolado.
Nada de poemas sobre órteses, membros artificiais.
Nada de muletas, dentes postiços, lentes de contato.
Me atrai o poema rude e resistente
Que fuja de ser abatido.

Eu acosso o poema
De músculos rijos,
Pronto a ser perfurado.
Nunca os poemas vestindo capote e botas.
Nunca os higiênicos, os asseados e servis.
Me atiça o poema criado nos pântanos,
Submerso e traiçoeiro.

Eu caço o poema
De garras e dentes,
Equipado para a luta.
Nenhum poema que se achegue à ceva.
Nenhum poema manso, acostumado à ração.
Me instiga o poema arisco, desconfiado,
Que rosne, ranja os dentes.

Eu busco o poema
De instinto e alma,
Capaz de ferir.
Renego o poema desprovido das essenciais defesas.
Renego, sobretudo, o poema catequético, desarmado.
Me importa o poema contagioso,
Que deixe largas cicatrizes.

Eu quero o poema
De vísceras e fel,
E que, ferido, ainda corra.
Não aos poemas dispostos a se ajoelharem.
Não aos poemas domesticados, que aceitam coleira.
Me interessa o poema vivo, ofegante,
Que rasgue o meu peito
Antes de eu matá-lo.

Eu desejo o poema de verdade.
Alado.
Para abatê-lo em pleno voo.

CONTOS NOTURNOS


O CINZEIRO VERMELHO

Acordou cedinho para pôr-lhe o café à mesa. Tão logo o fez foi à janela acender um. Ele rosnou. Rosnou a música de todos os dias. Gutural e entre os dentes. “Vício miserável!”

Ela baforava para fora. a fumaça levava o espírito a lugares desconhecidos. E enquanto baforava pensava no dia; embora não precisasse. Seria como ontem, como anteontem e ainda o seria amanhã.

Voltou-se para dentro quando o ouviu queixar-se de alguma coisa. Queixava-se sempre, aliás, para cortar-lhe ao meio o cigarro. Ela saiu da janela para acudir. Antes, no entanto, deitou fora o companheiro. Fez o que pôde, automaticamente, porque as queixas não demandavam empenho, mas presença. Só presença. Servidão.

Comeu que se fartou. Pediu que os ovos , no dia seguinte, estivessem mais assim ou mais assado e ela assentiu, sem uma palavra. Foi levá-lo à porta; esperança de um beijo de bom dia. Mas quê! Seus lábios postos esperaram em vão. Ele se recusava, como fazia questão de repetir, a beijar um cinzeiro.

Fechou a porta atrás de si e foi cuidar. Cuidar para que tudo brilhasse. Estivesse a seu gosto ao fim do dia.

Lavou-lhe à mão os jeans sujos de graxa, areou o bule e a leiteira, secou a louça e a guardou com cuidado para que nada estivesse fora de seu devido lugar. A tarde amainou com as roupas no varal e a casa perfumada. Vários cigarros depois.

Não leu a revista que ensaiara, tampouco assistiu à novela da tarde, sua favorita. Apenas fez. Fez como fazia todos os dias. Fez como o faria no dia seguinte.

Depois de encaminhar a janta correu para juntar as poucas moedas que lhe restavam. Com sorte lhe reporiam o cigarro, quase no fim. Rumou à venda da esquina, muito apressada, antes que ele chegasse.

Quando tornou não havia nada. As roupas do varal, nem panelas sobre o fogão. Nem fogão. Nem varal. A casa, tampouco. Ele também não estava...

Ela também não estava!

Voltou radiante à venda e trocou os cigarros por um batom. Passou-o ali mesmo, sem pressa ou constrangimento; depois seguiu lentamente até desaparecer nas cinzas da noite.

...Com um sorriso brilhante brotando dos lábios; cinzeiro carnudo e vermelho.

domingo, 25 de julho de 2010

CANÇÃO PARA MINHA MÃE
(ou: gramática de ninar)

Pretérito
Perfeito como um verbo
Transformado em rosas.

Minha mãe!
Sinto o gosto do teu leite
Na boca
Da manhã.

O teu beijo
Em minha face
Fez crescer
Barba, bigode, saudade.
O anel
Que tu me deste
Era vime.
Teus dedos nos meus
Anelados
E o meu umbigo
No teu útero
Permanentemente.

Sujeito
Oculto feito um verso
Criado no colo.

Minha mãe!
O cheiro do teu cabelo
Minhas angústias
Amansa.

Os teus olhos
Nos meus olhos
Desabrocham
Begônias, estrelas, lágrimas.
O amor
Que tu me tinhas
Era fruto.
Bendito é o fruto
Do vosso ventre:
Menino teimoso,
Homem vincado, canhoto,
Envelhecendo até ser capaz
De desnascer.



(Coincidência ou não, minha mãe acabou de me ligar... Matar um pouco a saudade).


sábado, 24 de julho de 2010

POEMAS RECÉM-NASCIDOS



O COITO NA MANHÃ SEGUINTE

Pôs unguento na ferida
E a lacrou
Com renda branca.
Deu-me de beber
Um comprimido de esperança.
Fez dormir
A minha angústia
Cantando versos
De esquecer.

Lavou-me a fronte febril
Com água de rosas.
Recostou-me em sua teta
E eu bebi.
Amargo, o seu leite,
O bom remédio
Como amargos
Os remédios devem ser.

Costurou-me a pele
Sobre o corpo
E a alma coseu
Junto às entranhas.
Salvou-me, por fim,
De chorar
Com lâmina
E traqueotomia.

Permaneceu acordada
Assistindo ao meu delírio.
Dentes rangendo,
Ossos querendo sair.
Rezou sobre meu sono atribulado;
Não dormiu.
Quando acordei
Ainda estava lá, a vida,
Com seu sexo aberto, exposto.
E eu o penetrei
Até que engravidasse de mim.

DA SÉRIE: POESIAS INACABADAS


O AZAGAIEIRO

Saíste.
Tinhas nas mãos a azagaia e o espólio de teu pecado.
Seguiste com ele em tuas palmas, terrivelmente atacado.
Fugiste igualmente ao castigo para o qual foste talhado.
E em riste o terás sobre o dorso, eternamente cravado.

Partiste.
E rápido como teus rastros, apagou-se o teu legado.
Resiste da tua história somente o que não foi contado.
Concluíste o mal intento e em teu destino assoberbado
Persiste ao esquecimento um assassínio imputado.

Caíste.
Como caiu tua sentença sobre um rosto aviltado.
Denegriste a amena têmpora de teu irmão invejado,
Abriste terrível úlcera, deixaste-o lá, abandonado.
Aboliste-o pelo sangue. Tu restaste escravizado.

Denegriste,
Sujaste a pedra e a lança, teu futuro e teu passado.
Consiste de tua lembrança um espírito vil, perturbado
Construíste sobre a areia teu castelo e teu reinado.
O alpiste que te alimenta foi na morte conspurcado.

Premuniste,
E no entanto o fizeste, o evento foi consumado.
Cumpriste o negro fadário, por negra coroa, ornado,
Persiste em tua cabeça e na lápide há de ser gravado.
“Triste, aqui jaz Caim. Que ao irmão teria assassinado”.





(Poema inacabado. Tinha um sentido, uma forma e um rumo, agora ganhou outro. Começou a nascer não sei quando e findou hoje, 17 de julho 2010).

sexta-feira, 23 de julho de 2010

POEMAS RECÉM-NASCIDOS





AVE-MARIA RADIOTIVA


Cinco e meia
Já tem lua.
Esperneia a inquietação
Entre um cigarro e outro
Trago
Lua cheia.

Cinco e meia
A vontade bipartida.
Sobre a amurada o oceano
Enfrenta as pedras
Aziago
As chicoteia.

Cinco e meia
A primeira estrela.
No mesmo cinzeiro os meus olhos
No mesmo cinzeiro
Os apago
Cinco e meia.
...

Às seis horas da tarde
Um meteoro se chocará
Contra o meu espírito
Às seis horas da tarde
Ave-mariarei
Plasma,
Silêncio,
Passado.

A oração de pó,
Radioativa,
Dita em meu favor
Derreterá o metal do tempo
Permanecerá ainda minha
Às seis horas da tarde.

(Como fora minha
A lua cheia
Desde antes de eu nascer, e tanto
Quanto o era quando me orbitou
Às cinco e meia).

POEMAS PERDIDOS NO TEMPO

SUAVE Nº 1

A vela crepita, a formiga escala o azulejo,
Corre atrás de outra – à frente de uma, corre,
Invade a alma uma quietude que escorre
Qual escorresse na boca antigo pedaço de beijo.
E corre a formiga, escala o azulejo.

Sempre formiga; e sempre alma a escorrer,
Sempre cheia, sempre à mercê, sempre à borda,
Na alma o açúcar que a toda formiga acorda
Em toda formiga o impulso que a faz a correr.
E corre a formiga, escala o azulejo.

Pára ante o ladrilho e observa – uma criança –
Desliza o dedo gordo contra a parede lisa,
Fosse no chão o caminho – onde se pisa –
Não tentaria com o longo dedo que as alcança.
E foge a formiga, escala o azulejo.

A manhã se deita, a formiga escala o azulejo,
Consome-se em olor de bruma arrefecida,
Rompe a garganta estridente gosto de bebida,
Só comparado ao gosto do inconcebível desejo.
E corre a formiga, escala o azulejo.

E ao refletir da vela contra os olhos infantes,
Com os dedos gordos queimados de parafina,
Desliza sobre o azulejo a chama e o ilumina,
Acendendo-a por detrás, cercando-a mais adiante
E a formiga já não corre – morre! Escalando o azulejo.




(Trata-se de um poema antigo, meados do ano 2000, ainda sob o escaldante calor de Cuiabá).

quarta-feira, 21 de julho de 2010

POEMAS PERDIDOS NO TEMPO


LADO B

                                                 ...Antes eram
pobres,
putas,
e pretos
O esgoto silente e secreto
Correndo a céu aberto,
À noite, à sombra, sob o véu escuridão,
Um tipo velado de corrente escondendo um tipo diferente
De escravidão.
pobres
putas
pretos
O mesmo sobrenome: ladrão.

...Hoje
A modernidade recria
Novos tipos de minoria
Dessas que andam de dia
            e são aceitas aos pedaços,
pretos, pobres e putas
gordos, branquelos, viados
carecas, sapatas e aleijados.
moleques, pivetes, desempregados.
A mesma falsa moral
O mesmo rótulo: anormal.

“Lá vem um preto dirigindo um carrão importado”.

Patrão, ladrão ou empregado?

Um pobre a espreita num restaurante refinado.

Roubo, fome ou lugar errado?

Uma aprendiz de puta chora o leite derramado
                              (Das sarjetas de suas tetas),

No vazio de seu ventre sem um ente desejado.

Chora, a noite, chora, para que as lágrimas varram a sujeira embora
           pretos pobres putas

“chora, noite, chora, enquanto ninguém te escuta!”

...hoje
        a modernidade respira
        um tipo diferente de mentira
                                  chamada evolução.

        pretos pobres putas e viados
        gordos branquelos sapatas e aleijados

Riso fácil entre os dentes
Punhal apertado na mão.
A modernidade se traveste de embuste
Um travesti chamado evolução.
O lábio ri enquanto passa
O comboio dessas sub-raças
O espólio generoso da desgraça
Ardendo em brasa a tolerância carvão.
        Riso entre dentes cortando a roupa
        Punhal cuja ponta se estica a partir da boca
        Destilando ódio, veneno, segregação.

pretos pobres putas viados          branquelos carecas sapatas aleijados
mendigos moleques pivetes desempregados:

gado, gado, gado, gado, gado, gado, gado, gado, gado, gado, gado...

Faz-se o silêncio e o silêncio permanece calado.

é o filho do vizinho que é viado
é do pivete de rua o prêmio do vidro quebrado
e para o desempregado? ao quadrado, ao quadrado,
o jornal de ontem, os classificados, o prato vazio, o portão fechado
o semblante levemente desconfiado, ao quadrado, ao quadrado,
cuidado! (ele pode estar armado).

Faz-se o silêncio e o silêncio permanece inquebrantado.

cego para a menina sem namorado
cego para os corpos avantajados
cego para os humildemente magros
cego para os cabelos rari-ficados
cego para os descorados
cego para os excessivamente corados
cego para os que não são
cego para os que são exacerbados
                           cego para os que não se encaixam
                           no molde pré-determinado
                           perfeito correto justo belo validado
                           aceito permitido bem-vindo corroborado

                                  a modernidade se veste
                                  com uma pele que serve ao mesmo
                                  propósito passado.

cega!
um risinho lacônico, um comentário debochado.

pretos pobres putas viados          branquelos carecas sapatas aleijados
mendigos moleques pivetes desempregados:

gado, gado, gado, gado, gado, gado, gado, gado, gado, gado, gado...

talvez o futuro seja uma incógnita hipotética
e as grandes lições sejam verdades patéticas
talvez nasça um girassol no Atacama
talvez antes disso a terra se consuma em chamas.

Futuro é vento soprado de pleno pulmão
Que move o mundo e as grandes revoluções.
Gente não é gado
Não importa o tamanho do cercado
O pasto, a marca, o cabresto, o arado, o tipo de ração...
Gente é universo que explode,
  inspira, transpira, ferve, vibra, fode,
Gente é mais que roupa, rótulo, posse, aceitação,
Gente é aquilo que pensa.
(A menos que pense que não).

pretos pobres putas viados           branquelos carecas sapatas aleijados
mendigos moleques pivetes desempregados:

pode ser gado, pode ser gado, gado, gado, gado, gado, gado, gado...

Talvez a diferença seja justamente esta
Saber a quanto de gado cada um se presta.

No lado “b” do disco a faixa mais espúria,
O som das patas do gado
Levando no peito o arame farpado,
Cabrestos, rótulos, olhares atravessados,
Deixando de ser gado para ser uma manada em fúria.

Deixando de ser gado para ser semente.

Pretos, pobres, putas e viados,
Branquelos, carecas, sapatas e aleijados,
Mendigos, moleques, pivetes e desempregados:

Gente, Gente, Gente, Gente, Gente, Gente, Gente, Gente...



terça-feira, 20 de julho de 2010

POEMAS RECÉM-NASCIDOS


CATECISMO DE FIO E CORTE

Entender a língua das navalhas
Pela lâmina.
O idioma dos punhais,
O vocabulário secreto dos garrotes,
Pelo uso
Ou pela simples interpretação de sua presença
Em versos agudos.

Apreender de um espinho
A carícia pontuda.
O desejo dele.
Falo, falo por completo, de corpo inteiro,
Fazendo prazer em toda carne
Em toda parte.
Gozando ponta para dentro
Fundo. Até o pé.
Feito uma rima boa
Ou uma idéia iluminada.

Esmiuçar o mistério das farpas
Com as unhas.
O irrevelável dos cacos de vidro
E dos pregos oxidados.
Sabê-los com a alma
Ou com os calcanhares,
Se todo o resto não bastar.
Descobrir a letra que falta
Antes da hora,
Antes que seja tarde.

Deslindar da pólvora o perfume
Do fogo esgotado.
Do fogo apenas
Ou da ausência do fogo.
Cheirá-la depois de morta,
Domesticá-la, desmistificá-la.
Cantar para que vire pó
Pólvora cremada.
Lançar-lhe as cinzas ao mar
Enquanto a declama.

Captar o derradeiro suspiro
Do poema,
Seu passamento antecipado.
Sua matéria inevitavelmente esfriando
Sob a pele das palavras.
E, já apodrecendo, suas unhas
Cabelos e métrica.
Ouvir-lhe a leitura do testamento
Com lágrimas nos olhos.
E secretamente,
Muito secretamente desejar
Ser-lhe o único herdeiro.

Reter no peito o angustiante sentimento da poesia
Nem que para isso seja necessária
Uma faca
Metida até o cabo.