"PORQUE NARCISO ACHA FEIO O QUE NÃO É ESPELHO" (Caetano Veloso).

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

CRÔNICA DO DIA.


CARTA AO SENADO

Senhores Senadores,

A manada está inquieta e já se aglomera próxima à cerca do curral. Está chegando a hora de deixarmos de ser gado e nos tornarmos aquilo que verdadeiramente somos: gente.

Muito embora alguns dos senhores ainda nos considerem reses cativas de seus currais e acreditem que um mísero bocado de ração e um açude de água barrenta sejam suficientes para nos manter de focinhos baixos, dóceis e servis, o gado de vossas excelências foi contaminado pelo vírus da raiva; escuma a boca, range os dentes, bufa e raspa os cascos contra o piso enlameado do mangueiro.

Ao longo dos anos o morcego hematófago nos vem sugando, se alimentando de nossas virtudes, confiança e paciência, entretanto esse mesmo animal – também apelidado de corrupção, desmando, falta de ética e descaso com a coisa pública – conseguiu, por fim, nos infectar irremediavelmente.

Somos um povo pacífico, senhores, por isso mesmo temos sido tomados por ovelhas, por gado manso, descartável, destinado ao abate; contudo não se deve confundir nossa atitude cordata com resignação permanente.

A paz, da qual alguns dos senhores se aproveitam para nos conduzir, feito espectadores silenciosos, ao abate inevitável do caráter, da moral e do respeito, cede seu posto de comando a um outro sentimento igualmente forte: a revolta.

Mas não temam ainda, senhores, porque não haverá um levante de bichos enfurecidos – armas em punho -; o que o Brasil está prestes a testemunhar é o rompimento das coleiras, a destruição das mordaças, a marcha estrondosa dos pés rachados e o som estridente dos mugidos que, de tamanha força, se transformarão naquilo que alguns dos senhores ignoram: voz.

A voz das casas se espalhando pelas ruas, tomando cidades, se alastrando pelo interior do país até os mais remotos confins. Ecoando nos quebra-mares do litoral, na caatinga, nas vidraças dos prédios, nos campos recém-plantados, nas fábricas, nas escolas, nos céus do planalto e, por fim, nas urnas.

Voltem à carta magna. Nela encontrarão o mandamento primordial. “Todo o poder emana do povo e para o povo”. Os senhores não são donos de absolutamente nada a não ser de vossa faculdade de decisão que, como temos observado com grande vergonha, converge inequivocamente para interesses pessoais, partidários, escusos, equivocados e completamente dissociados das necessidades do povo brasileiro.

Não se enganem. A mancha de descrédito que macula todas as instituições públicas, legando a elas a pecha – por vezes injusta - de corruptas e ineficientes, é produto do caldo espesso de acordos, negociatas, manobras e impunidade que vem sendo cozinhado ao longo dos anos com a conivência – ou participação ativa – de muitos dos senhores. Em síntese, vossas atuações contribuem decisivamente para agravar a crise de credibilidade que afoga todo o serviço público do país.

Pesquisem, libertem seus ouvidos para além do séquito que os aplaude. O descrédito é crescente, os discursos não convencem, a suspeição impera e até mesmo aqueles – poucos – cujo comportamento tem se mostrado sério e reto, têm as barras de suas calças enlameadas pela nata de lodo que se eleva.

Observem o burburinho que se estabelece no curral. É gado virando gente, é povo virando cidadão, é cidadão se levantando feito devastadora onda. Somente os que conseguiram ouvi-la antecipadamente sobreviverão a ela.

Findo este preâmbulo, senhores, conclamamos aqueles cuja decência ainda não foi vencida por algum favorecimento ilícito a assumirem seus papéis de verdadeiros representantes do povo e a engrossaram a orquestra das vozes irresignáveis.

Ainda há tempo de dizerem não. Não aos atos secretos, não aos acordos políticos com fins duvidosos, não aos desmandos do poder, não à transformação dos poderes legislativos em ambientes sem leis, não à falta de ética e de decoro, não à proteção recíproca, não ao cenário circense que envergonha a toda a nação.

No dia 7 de setembro, às 17 horas, a manada romperá as cercas do curral e seu estouro será ouvido em todos os cantos do país. Seremos nós – os que alguns ainda consideram massa de manobra – gritando: Basta! Esse será o primeiro passo rumo a um país que mereça seu povo, que seja digno de quem diariamente o constrói.

A sabedoria popular diz que “o povo tem o governo que merece”. Estejam certos, merecemos mais.

Não se calem porque o povo não se calará. Nem agora, tampouco e principalmente nas urnas.

Geraldo Vandré e Theo de Barros escreveram, em idos, negros e turbulentos anos, uma *canção cujas notas sobreviveram ao tempo e ainda servem de aviso: “Porque gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente”.

Com gente é diferente!





(*"Disparada" - De Geraldo Vandré e Theo de Barros)

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

CRÔNICA DO DIA.


UMA “QUASE” RECRIAÇÃO DO UNIVERSO

“A lua rasga a cortina de nuvens com as mãos.
(Desesperada).
Porque o mar precisa dela”.

A visão do esforço me arrebatou. Havia sido um dia de “quases”. Quase esfriou, quase um vinho, quase recomecei a escrever o último volume da trilogia. Quase me empolguei; mas fui vencido.

Ao final, depois de ter posto ordem nos afazeres, de ter inventado uma distraçãozinha para o estômago, fui até a varanda e vi a cena.

Pensei ter me deparado com alguma cortina de linho muito antiga; tecido roto, esburacado pelo vento. No entanto eram nuvens. Nuvens brancas e longas, desde a cumeeira do céu até o rodapé do horizonte.

Estava escuro (assim como eu).

Então deu-se o milagre. Por vários pontos frágeis daquela espessa cortina, escapava a luz; descia até as águas lisas do mar, adiante de mim. Tudo muito bonito de se ver. A reinvenção do livro do Gênesis ou um plágio visual de “chão de estrelas”; escolhi a canção e a cantarolei sozinho enquanto a beleza me ardia: “a porta do barraco era sem trinco, e a lua furando nosso zinco, salpicava de estrelas nosso chão. E tu pisavas nos astros”... e parei, distraído.

Meu imenso teto cortinado de algodão, através do qual a lua se espremia e escapava para se atirar no mar... Ele precisava dela, assim como eu precisava daquela visão para encerrar o dia.

Não cheguei a vê-la, vi apenas as ilhas de brilho prateado espalhadas sobre a água. E então o livro do Gênesis me serviu: “o espírito de Deus pairava sobre as águas”. (Deveria ser).

E tudo o que havia sido quase passou a ser inteiro. Sem mistérios ou atropelos. Silenciosamente. (Graças ao esforço de uma lua que não desistiu).

terça-feira, 18 de agosto de 2009

CRÔNICA DO DIA.


L’AURORA

Eros Ramazzotti escreveu uma belíssima canção, para a qual Zizi Possi emprestou alma e paixão. A canção se chama “L’Aurora”, e durante muito tempo meu despertador matinal, minha aurora, foram as notas dessa música.

Ela me cava, se vai escorrendo por minhas veias feito um alucinógeno e me enche de melancolia. Num dos trechos (em tradução livre) diz o seguinte: “Aquilo que mora no fundo do coração não morre jamais.Se uma vez você acreditou, vai acreditar de novo. Se uma vez você acreditou de verdade, como eu acreditei, será, será a aurora”.

Antes de conhecer a tradução eu não entendia a razão de tanta melancolia, de tanta saudade; não conseguia atinar para as reminiscências nem lhes dar um corpo, uma forma ou um tempo. Hoje a compreendo claramente e ela me fala de minhas raízes, daquilo que sou por força dos genes, do amor e da família.

Fala-me de uma Itália que não conheço, mas que minha nona trouxe consigo quando de lá escapou da fome, imigrando, como muitos o fizeram, para se reconstruir no novo mundo e nele plantar seus sonhos desesperados.

Faz-me lembrar dessa velha nona em volta do fogão de lenha, fazendo requeijão caseiro e me deixando a panela de ferro cheinha de raspas crocantes para eu me deliciar; e do dia em que ela se foi, mesmo dia em que meu pai chorou feito criança, sentado no chão vermelho do alpendre, inconsolável, completamente desprotegido, completamente órfão.

Nem tudo o que se passa com nossa alma cabe em palavras, tampouco a saudade que carregamos cabe em imagens. A saudade é uma fotografia imprecisa, desbotada pelo tempo, mas nítida no íntimo de quem a carrega. Não carece de nada, apenas do papel amarelado onde, um dia, a vida reluziu, brilhou feito a aurora.

Melancolia e saudade não rimam com tristeza, e justamente por esse motivo é que a música não me dói; ela é doce por me permitir ultrapassar o véu dos anos e retornar, sempre que desejo, ao ponto onde tudo começou, ao sentimento original.

“Aquilo que mora no fundo do coração não morre jamais”. Eu acredito, acredito de verdade. É por isso que, por mais distante que esteja, minha alma permanece sentada no chão do alpendre, ao lado de meu pai, consolando-o, ainda que sem dizer uma única palavra.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

CRÔNICA DO DIA.


PÃO

O fermento biológico fresco, aquele de tabletes, quando misturado ao açúcar se transforma, abandona o aspecto árido e se entrega ao outro elemento, unindo-se a ele de forma a ser impossível separá-los; juntos dão origem a um caldo espesso, que é a base da receita.

A farinha entra em seguida. Deve ser peneirada para evitar que impurezas ou caroços comprometam a massa. Ela se deita sobre o leito líquido de fermento e açúcar e aguarda pacientemente que lhe banhem com um bocadinho de água morna. Água esta que, por sua vez, não pode e nem deve ser agressiva. Não tão quente de forma a escaldar os demais, nem tão fria a ponto de fazê-los se retraírem.

Depois pitadas de sal. Servirão para equilibrar a doçura e realçar seu encanto. Quando se pretende uma receita salgada, acrescenta-se um pouquinho mais, mas sem abandonar o açúcar inicial.

Por fim um fio de bom azeite. Um cordão de ouro derramado sobre a face alva da farinha; e então as mãos. No princípio movimentos delicados, até que tudo se una, se habitue, que todos os elementos se entreguem uns para os outros.

E quando se obtém uma massa homogênea é que o trabalho realmente começa. A sova, a força do rolo, do cilindro, a pressão e o peso empregados para comprimir a frágil e delicada mistura... A não mais poder se deve forçar, porque a compressão fortalece o composto, alisa a massa e a deixa pronta para ser modelada.

Uma vez que se a modele, bastar conservá-la em ambiente fechado, preferencialmente abafado, e esperar o que o milagre aconteça. Vai se agigantar e enfrentar o forno até se tornar uma outra coisa, muito distinta de todas as demais que outrora fora...

...Penso que viver é uma grande receita de pão. Com doçura se vai transformando as pedras em substâncias menos densas. A maturidade se encarrega de nos ensinar a peneirar, a aproveitar aquilo que é puro e genuíno e ao mesmo tempo nos apresenta à virtude da temperança. Arrefece o calor intenso da juventude e equilibra o frio excessivo das incertezas.

O sal é o elemento de contraste. As alternâncias entre sorte e revés, alegrias e desventuras. É o que nos mantém despertos e conscientes de que nada existe que seja perene - e caso existisse algo que o fosse, perderia o sentido em si mesmo. Ele nos ensina que somente as dicotomias são capazes de revelar as verdadeiras de existir.

A partir da prensagem das pequenas surpresas, dos riscos, do improviso cotidiano é que se obtém o azeite, combustível e lubrificante, que movimenta o carro dos dias e o impede de ranger, mesmo quando muito carregado.

O restante é o que é. Amassar, sovar, cilindrar, esperar. Dar forma ao que se quer, modelar com as mãos os próprios sonhos e submetê-los a altas temperaturas para que se tornem... Sonhos ou pão.

Quem não sonha jamais será capaz de compreender que, a exemplo da massa, a vida é uma grande mistura; uma mistura de ingredientes, esforço, espera e fogo.

Sonhar é tão importante quanto viver.

(O resto são formalidades; é o que não cresceu e, portanto, não irá ao forno).

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

CRÔNICA DO DIA.


ELA ME PEGOU E ME JOGOU NA CAMA

Ainda estou curtido pelo rescaldo de cansaço da noite passada. (Noite passada em branco, sem pregar o olho).

Mas o que dizer? Fui tomado por ela, dominado de um jeito que jamais pensei. Quando dei por mim estava estirado no colchão, completamente suado, exausto, exaurido até o último poro.

Encontrei-a pela manhã. Estava indo à padaria, comprar o pão para preparar meu café. Chovia um pouco e eu nem percebi, tamanha a pressa. Havia acordado à toda e feito a higiene bucal meio dormindo. Desci ainda quente, sentindo os lençóis atrás de mim como segunda pele. Duzentos metros depois, na porta da padaria, foi quando acordei de vez.

Peguei meus pães e virei no rastro (paguei também, mas isso está implícito), correndo para casa. Rua semidesértica, garoa aumentando a ponto de me esfriar... Eu ofegava. Próximo ao semáforo eu a senti chegando; enquanto esperava o verde ela se encostou em mim; nada disse, nada pediu; foi ficando, me agarrando ali mesmo, apalpando, pegando feito dona.

Depois disso o tempo passou a ser dela, de seus caprichos. Não comi direito, sequer fiz outra coisa que não fosse lhe dar atenção. Ficamos juntos o dia inteiro, mas não foi o bastante para satisfazer sua compulsão, seu voracidade.

À noite ela pulou sobre mim. Torceu meus músculos, me sugou, lambeu minhas energias e depositou brasas sob a minha pele. Dominou meu sono, se apossou de meus sentidos... Faltava-me o ar, falhavam-me as forças, meu suor molhava os travesseiros.

Quando mais lhe dava, mais ela pedia. Exigia. Minha noite entregue a ela. Fui seu escravo.

Acordei – se é que dormi por alguns minutos - com dores por todo o corpo; garganta arranhando. A febre durou até o primeiro comprimido de paracetamol. Olhos ainda ardentes...

Gripe desgraçada.

Hoje eu estou preparado. Trouxe da farmácia munição de matar elefante, e se ela se encostar em mim eu a derrubo, ah se derrubo, assim como ela fez comigo... Pode vir a gripe do frango, do gato, do cachorro, da vaca, do porco... Pode vir a fazenda inteira se quiser... Comigo não! Acaso sou homem de me amarrar? Comigo é uma noite e olhe lá...

O quê? No que é que você estava pensando? (A gente não pode nem ficar doente que o povo já pensa besteira)...

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

CRÔNICA DO DIA.


CONSULTOR, ESPECIALISTA EM FAXINEIRAS OFERECE SEUS SERVIÇOS

Em tempos de crise, em que o emprego está cada vez mais difícil e - em oposição - a modernidade e a informação possibilitam a invenção das profissões mais curiosas criei, a partir de minha experiência, o posto de “consultor especialista em faxineiras”. Segue meu currículo:

A primeira, ainda em Cuiabá, foi Mirtes. Não era faxineira, só lavava e passava (mas conta como experiência). Depois foi Linda, a troncudinha intrometida, especialista em carne moída com batatas. Durou o tempo do enjôo da comida (teria durado, não tivesse levado um seu amigo para experimentar minha cama – sim, a minha cama. (Infeliz!) - em uma de suas tardes de solidão).

Dona Helena foi a seguinte. Fiz tanta propaganda que foi coopitada por uma colega de trabalho, que se apoderou dela e a transformou em secretária fixa. Paciência. Deve ter sido melhor para ela, já para mim (...).

Lara, a seguinte, (o nome eu não era esse, mas vou chamar de Lara porque combina com larápia) fazia a feira na minha despensa e passeava com meus vale-transportes. A criatura era tão magra, mas tão magra, que se tivesse me pedido eu teria dado a despensa inteira (os vale-transportes não. Eu precisava deles).

Inaugurando o quesito irmãs, Lena, a muda que não era (é, não era muda, mas também não falava. Dá para entender?) e sua irmã Cirleide. A segunda – que falava mais do que fazia - queria ser faxineira de meio período, contudo a diária era inteira. É mole? Acha que eu aguentei? Olha para a minha cara e diz... Lena foi ser fixa. (Me deu um frio na barriga; a moda estava começando a pegar).

Rodaram a irmãs e veio Divina. O nome revela tudo. Ô mulherzinha maravilhosa. Fazia agradinhos caseiros, bolos de caixinha e tal. Se topasse a teria levado comigo para Fortaleza.

Na capital cearense conheci Mônica. Jovem ainda, e muito coerente com aquilo que dizia. Imagine que ela fazia almoço para nós. Quase na hora da fome ela disparava de onde estivesse: “Posso torrar o bife?” Da primeira vez aquilo me soou estranho, mas entendi quando me sentei a mesa. Como expliquei, levava muito a sério suas palavras. Torrar era torrar mesmo, e o tal bife serviria até para sola de sapato ou revestimento de bolsa. (Acho que tinha medo do mal da vaca louca)...

Como o destino me levou rapidamente para outras paragens, aportei em Ribeirão Preto, onde a lista cresceu a valer. Lá veio a segunda leva de irmãs. Dona Edna e sua suplente.

A primeira, faxineira de hotel, registrada em carteira e tudo; era uma máquina. Meu Deus, dava para comer no chão que ela limpava. O único problema é que sua faxina durava quase 22 horas. Dizia assim: “não se preocupe que esse é o meu ritmo”. Caramba, se me descuidasse ela dormiria em casa... Logo se via que um relacionamento pegajoso como aquele não teria bom futuro. Com a suplente foi a mesma coisa. Veio duas ou três vezes, e me abandonou... (Me trocou por uma vassoura qualquer).

Em terras ribeirão-pretanas bati meu recorde. Juntou-se a ela a cunhada do porteiro, metida a celetista, sindicalista, sei lá, com jornada das 8h00 às 17h00, duas horas de almoço e dane-se o resto. (Pois se era justamente para o resto que eu precisava dela)... Aumentando o escrete Dona Maria “quebra vasos”, cuja alcunha justifica a única faxina que me fez; Sônia do Prato (não a apelidei de quebra pratos porque seria injusto com Dona Maria), que com mira certeira me livrou de um antigo prato decorativo do qual gostava às pampas (mais até do que gostei dela); Creuza, Izabel e Beatriz – pareceu-me um complô – que me avisaram por telefone (cada uma em sua emana, é óbvio) que não voltariam, estavam em outra (casa, eu acho)... E assim, sem maiores explicações, deixaram-me com o coração quebrado e, Deus me valha, com os copos e a louça restantes ainda inteiros.

Pensa que acabou? Ainda não!

Com Ana das Dores tive algum sossego, embora ela mesma não tivesse nenhum. Chamei-a de Ana das Dores, porque toda semana ela me aparecia com uma dor diferente. Quase me ofereci para fazer faxina em seu lugar... Sei lá, pensei em ajudar a coitada; sentimento humano, caridade, sabe?

A segunda Izabel, que em nada se parecia à primeira, tentou dar o truque dizendo que tinha proposta melhor etc... Conversa mole, queria inflacionar o preço do serviço... Manteve a mentira e aceitou a proposta que não existia (foi ser fixa na casa dela).

Estava eu novamente na mão (literalmente na mão; mão na pia, no tanque, no ferro de passar). Até que encontrei Rosânea. Outra divina. Cozinhava para gordo nenhum botar defeito. Tão querida que foi promovida a secretária fixa (me vinguei, aderi à moda), permanecendo comigo enquanto estive por aquelas bandas.

Já no Recife a primeira experiência foi aterrorizante. Busquei auxílio num flat (fiz logo a correlação com Ribeirão Preto: faxineira de hotel, profissional etc. etc), mas quê, a mulher era um demônio surrealista. Em um único dia de trabalho conseguiu pintar metade de minhas paredes novas com óleo de peroba. Não acredita? Venha ver, algumas marcas não saíram até hoje.

Dessa trágica experiência voltei para o secretariado fixo, o qual me serviu (assim, assim) durante um ano.

Recentemente tornei ao ramo da faxina semanal através de Mocinha. Boa de fazer gosto. Com essa eu me ajeito, pensei... Nova decepção.

Ligou-me hoje pela manhã dizendo que a patroa - a de um outro serviço - a chamou (em seu dia de folga e meu dia de limpeza) e fez ameaças para que trabalhasse em sua folga. É, ameaça. O negócio aqui é feio... E quem ficou com as vassouras na mão?

Não me dei por vencido. Acionei meu net-work (no caso uma outra moça que presta serviços domésticos no prédio vizinho, a qual tive a sorte de conhecer num passeio de elevador) e já tenho outra engatilhada.

Amanhã vem a Lili.

Ai, Lili, pelo amor de Deus, seja boa, seja fiel. Senão você vai ferrar com meu currículo.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

CRÔNICA DO DIA.


A LIÇÃO DO ESTILINGUE

Recorro ao passado sempre que preciso encontrar caminhos. Embora saiba que nada do que nele está escrito possa ser alterado, folheio-o feito o fizesse ao livro dos segredos. (Não que tente encontrar algum segredo, mesmo porque todos os versos que desfilam por suas linhas são meus velhos conhecidos).

E o passado me acode. Tem alguma sabedoria e uma estranha forma de se entregar. Muitas vezes não revela de imediato a página procurada e, outras, tenta ainda ocultá-la. Porém, no fim das contas se dá, se rende, abre as pernas, sua alma para mim...Trocamos sopapos, carícias, depois repousamos, um para cada lado, sem nos olhar nos olhos.

Essa nossa estranha ligação demorou para fazer sentido...

Se me orgulho de alguma coisa (e não tenho o hábito da soberba) é de não me deixar amarrar por saudosismos, tampouco pela felicidade ou pelos revezes vividos. Contudo, quando o namoro com o passado revelou suas razões compreendi que não havia como recuar.

Apesar de ser um homem casado com o presente, um otimista de carreira e um lascivo amante dos dias futuros, o passado é minha única posse. Meu livreiro, minha bibliotecária, a governanta, o mordomo de meu domínio interior. É ele que se incumbe de pôr ordem no que presta, queimar o que deve ser esquecido e de resgatar do entulho o que precisa ser lembrado.

Assim o fez com a página mais recente que me abriu. Antiga. Desdobrou-a de onde estava para me mostrar. Tinha eu por volta de sete anos e, como todos os guris das bandas da 13 linha, vez ou outra me metia em caçadas de passarinho (se bem que não se pode chamar aquilo de caçada, porque 99,99 (dízima periódica) % das vezes dava em nada), passando tardes e mais tardes a espreita de qualquer bicho que voasse para, ao fim da tocaia, tornar de mãos vazias.

Mas um dia foi diferente. Espreitando embaixo do abacateiro vi pousarem dois pássaros de plumagem castanha. Felizes de fazer gosto. Mirei entre eles e mandei bala (no caso, bola, de gude); por sorte (?) o tiro foi fatal, derrubando um. Corri feito desatinado – sabujo dos bons – alcançar a caça que ainda se debatia. Tempo de vê-la suspirar...

Não dá para mentir, foi quase um gozo, quase uma bola de futebol nova, quase uma nota máxima no boletim. Estava em êxtase com meu primeiro passarinho morto...

Dia seguinte, ainda animado, voltei ao abacateiro. O outro pássaro estava por lá, repicando entre os galhos como quem procurasse o que não sabia. Quando voou mais para o alto entendi do que se tratava. Assentado ao lado da barroca, da casa cujas paredes estavam pelo meio, a ave esperava pelo barro, pelo companheiro que não voltaria.

Aposentei precocemente meu estilingue.

O passado me trouxe essa lauda empoeirada e muito amarela. Eis o motivo de meu desvelo para com o esse tempo: sua generosa compreensão de minhas necessidades.

Veio me lembrar que - assim como os passarinhos que vivem pelo alimento do dia - o meu amor e a história de barro, gravetos, sonhos e cumplicidade que temos construído ao longo dos anos, são as verdadeiras razões para que eu viva o hoje e espere pacientemente o nascer da próxima manhã (uma de cada vez, até que Deus - menino caçador - resolva me estilingar).

terça-feira, 11 de agosto de 2009

CRÔNICA DO DIA.


DICIONÁRIO DE SILÊNCIOS

Cruzou-me a vista um homem em sua bicicleta cargueira. O vi treliçado, dividido, riscado verticalmente pelos gradis da varanda, qual imagem, silhueta que usasse longo pijama listrado, e este pijama se fosse alongando para antes e além dela.

Vinha devagar pela manhã - como pareceu-me ser toda a vida nessa manhã, vagarosa - pedalando delicadamente e sem esforço. Segui-o com os olhos, fazendo-os pesarem no compartimento de carga, dentro do caixote verde-musgo que ele trazia na dianteira de seu veículo.

Tão de leve o olhei que sequer notou os quilos curiosos de meu olhar; tampouco se desequilibrou ou parou para ajeitá-lo entre os poucos pertences que carregava. Foi seguindo displicente, entrecortado, vez ou outra, pelas copas das árvores e troncos dos coqueiros.

Quis imaginar alguma novidade que ele pudesse conduzir. Um peixe grande para o almoço de logo mais, uma coleção de discos antigos com capas engraçadas, um carregamento de pinhas, seis maços de pregos, duas dúzias de ovos de codorna, quatro braços e duas pernas de manequins mutilados, para transformá-los em nova divindade... Meus olhos entre os objetos, coisificados.

Pedalou até levar sua vida para longe de meu continente, deixou para trás as listras que o emolduravam e se perdeu sob a sete-copas da calçada (que, a propósito, exibia-se toda enfeitada, com lindas folhas alaranjadas pontilhado-lhe a copa verde feito fagulhas enormes).

Carregou consigo a calma, para ser reciclada em alguma usina...

Voltei para dentro do apartamento onde o silêncio condimentava o ar e preparava o cozimento da manhã. Só as imagens restavam. Elas e o murmúrio do vento nas frestas da janela, soprando brasas e fazendo arder o grande caldeirão no qual seriam fervidas todas as palavras, até derreterem completamente.

Borbulha, agora, o silêncio... Tem cheiro de lírios, de eternidade...

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

CRÔNICA DO DIA.


O DEUS DO MOFO

Pêlos nas reentrâncias do móvel. Entre o braço e o assento do sofá se haviam juntado resíduos imemoriais. O homem descobriu por acaso aquele estranho ninho - por acaso - quando enfiou sua mão lenta e indiscretamente pelas intimidades do móvel. Vulvazinha de tecido, cabeludinha, repleta de antiguidade como ele mesmo.

Já o vinham debelando os sons do dia; ensaiava intimamente uma reação qualquer quando foi vencido pelo inusitado e estacou. Recolheu-se deveras quieto observando a criação. (Deus se escondia nas grotas).

Correram séculos, segundos talvez, até que se deu conta de que aquilo representava a verdade em sua mais sublime face. Refletiu até encontrar palavras no meio do silêncio. Poliu-as com cuidado antes de depositá-las onde haviam dormido, porque não queria que despertassem empoeiradas; e as palavras, quando acordaram, sozinhas, eram curtas e simples.

A vida tratara de arranjar meios para esconder os cabelos caídos, os fios do tecido roto que vestira desde a juventude e a pele que, por vontade própria, decidira se desgrudar do corpo pela abrasão dos anos.

Que conclusão, afinal, acudira-o naqueles bravos instantes? Qual misteriosa verdade lhe fora posta diante dos olhos? Esperou um pouco até ter força para dizê-la, mas a disse, e ela era assim:

“A memória é feita de resíduos, de fios, cascas e cabelos. Tão orgânicos e férteis se vão tornando que, pela ação do mofo e da umidade, alguns fedem. Outros, graças ao Deus das coisas pequenas, resistem à decomposição, brotam a partir desta e florescem vivos. Belos, tênues e quebradiços, feito cogumelos alaranjados enfeitando o tronco que apodrece. É assim a memória: um tronco se perdendo entre as árvores do presente e os brotos do futuro; mas resistindo bravamente, porque sem esterco o novo tempo não tem forças para nascer”.

Foi o que disse a si mesmo como uma oração...

(Depois juntou os pêlos das intimidades do móvel e a deixou depiladinha, para que o bom Deus das cavidades a pudesse novamente emprenhar).

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

CRÔNICA DO DIA.


O HOMEM DO TELHADO

Vista de cima a casa se mostra uma fronteira. Sobre a cumeeira se equilibra o homem, e de cada lado dessa fronteira se apresentam os territórios. O primeiro, esqueleto de caibros e ripas desnudas, reserva em pontos distintos diversas pilhas de telhas. Oposto a este está o outro, regular e calmo, totalmente protegido pelos pedaços de barro; cobertura que é também roupa, lençol de escamas se estendendo para baixo.

Com o homem parado como está, equilibrando-se bem ao centro, não se pode dizer o que se passa. É apenas um homem sobre um telhado.

A imagem congelada é mesmo um mistério; igualmente, uma ousadia. Mistério que leva à dúvida e ousadia que põe pernas onde respostas não crescem. Desse um passo para um lado, se movesse lentamente no outro sentido, talvez entregasse uma pista, deixasse escapar um sinal. Mas ele é e está parado, e permanece, como também ficará, assistindo - imóvel.

Não se pode dizer-lhe a idade, tampouco ouvir-lhe a voz, pois é seu momento de descanso. E enquanto descansa tudo cessa à sua volta, tudo espera e recua, temendo que caia, sob o golpe do menor movimento.

E então, quem o vir em seu momento paralisado há de carregar no ventre o feto da dúvida - embrião gelado – ou mesmo uma célula de incompreensão, porque um homem estático, firme sobre um telhado, reserva em si um volume muito maior de perguntas que de respostas.

O transeunte que segue. (O tempo se dissolve); aquele jamais descobrirá.

O que faz o homem do telhado? Cobre ou destelha? Constrói ou desmonta? Protege ou revela as estranhas, expõe fragilidades?

Qualquer que seja a resposta (coisa muito íntima) só se revelará no movimento seguinte – irremediável -, quando não mais restarem os meios, tampouco o tempo para detê-lo.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

CRÔNICA DO DIA.


LIBERDADE, LIBERDADE, ABRE AS ASAS…

Quando escrevi “Leito de Procusto” o fiz com um propósito: exercitar a contenção, a economia e a forma. De tanto refletir sobre a beleza – que às vezes não precisa de muito para se manifestar – decidi “inventar” uma fórmula onde minha escrita pudesse se conter, se engaiolar sem abandonar o significado, sem deixar de dizer o que pretendia.

A tal fórmula é muito simples: são 20 linhas em word, na formatação básica do programa (sem trapaça e sem extensão de margem). No blog, em razão do espaço pré-determinado, isso dá por volta de 25 linhas.

A tarefa foi extremamente produtiva. Trabalho de jardineiro. Muitas vezes achei (modestamente) que um texto estava impecável mas, ao “jogar na fórmula” passavam duas, três linhas... Olhava consternado para ele. Olhava sem saber o que podar, contudo, se fazia necessário. Então pegava a tesoura e ia cortando ramos aqui e ali, tirando folhas-letras.

Mostrou-se uma proposta interessante, hercúlea e também muito libertadora. Fez-me enxergar que a cereja do bolo pode fazer a diferença e, outras vezes (especialmente quando não se tem nem se pode usar cereja), o que tem de estar verdadeiramente bom é a massa, senão desanda o glacê e não há cereja que o salve... Aprendi. Era o que buscava.

Agora a liberdade. Romper com o formato (mas só depois dessa crônica).

CRÔNICAS PORCINAS.


NÃO VOU TOCAR NO ASSUNTO…

Foram arquivadas as 11 denúncias contra o antigo rei do Maranhão (atual rei do Amapá). Cheiro de pizza recendendo. O pior é que se trata de pizza estragada, assada há mais de quinze dias (de massa pré-recesso, mofada antes mesmo de ir ao forno). Podre como o congresso. De Alicce.

Bola para a frente, porque a minha cota de crônica política eu a dei quando tinha por volta de vinte anos; muita paixão, muita esperança e pouco juízo. Quero falar disso não! Me enjoa, entristece e contribui para que me sinta menos inteligente, mais amargo, ácido e descrente.

Falar de quê? Da dicotomia esperança x vergonha na cara. Sim, porque manter a esperança política é, antes de tudo, um ato de desprezo à vergonha na cara. Gostaria de dizer que não, mas os fatos me contrariam.

Olha que eu sou um otimista, mas um otimista envergonhado. Com receio de assitir televisão e saber mais, enfiar o pé na jaca, ou melhor, na lama, no charco. Ver, saber me constrange, parece até que compactuo.

Havia prometido que não falaria disso, que não me permitiria uma linha a esse respeito, porque intimamente eu já sabia como iria terminar. Não foi a primeira nem será a última vez que o lamaçal, a imundice inunda o país. Hoje somos um povo digno de pena, um bando de náufragos boiando num mar de peixe podre, esperando pelo próximo jogo da seleção brasileira ou pela bolsa-fome da vez. E eleição, claro. Pão, circo e engodo.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

CRÔNICA DO DIA.

É DE METER MEDO

Há cerca de três décadas – e isso nem é tanto – porco não assustava ninguém. Para assustar criança desobediente os adultos armavam o que podiam. No sítio, lideravam assombrações e lobisomem. Deus o livre de acordar de noite com um vulto aos pés da cama e além, que Deus o proteja de topar com o cachorrão gigante – feições de gente – que rouba os recém-nascidos para comer sob a lua cheia. Ave, que isso fazia gente urinar nas calças. Havia também o homem da perua-kombi, o que roubava crianças e as levava para lugar ignorado, distante dos pais...

A gente cresce e descobre que boa parte desses medos se esvai com a idade. Desaparecem para dar lugar a outros. Assustar criança daquele tempo com H1N1 só professora de matemática; expressões numéricas, equações inacessíveis. E porco? Porco só preocupava quando estava recém-parido (no caso, a porca). Hoje não! Hoje o lobisomem espreita o banco 24 horas; trabuco na cintura. O sujeito da kombi não leva somente crianças (diversificou, e não fica mais com a coitada, pede dinheiro em troca), e a assombração foi eleita ao senado. Usa terno, bravata e bigodão.

O mundo está louco. Vou comprar uma passagem só de ida para a infância. Lá me associo ao lobisomem e ao homem da perua (devem estar aposentados). Vamos assombrar festa infantil, fazer transporte escolar e montar suinocultura financiada pelo BNDES. (Que os juros estão bons!).

terça-feira, 4 de agosto de 2009

CRÔNICA DA TARDE.

RECEITA DE BOLO

Veja se o dia é bom e se a manhã é branca. Se forem, o tempo está propício. Corra até a varanda e se debruce, olhando o mar (e se não tiver mar? Ora, seja criativo). Deve haver sobre ele (o mar) uma nata de sol corando-lhe a superfície, deixando-o amanteigado de luz. (E se não tiver mar? Aí entra a criatividade: procure a nata nas árvores, nas pedras, no asfalto recém-lambido pelo dia). Recolha o creme com os olhos e reserve.

Ainda onde se debruçou respire grosso. Respire e peneire os sons da hora. Não se assuste com barulhos encaroçados dos escapamentos ou com as pelotas de buzinas e pressa. Coe até ficarem finos, até serem vento líquido, silêncio gasoso, sossego em pó e paz. (Vai dar certo).

Depois, já numa bacia, misture tudo usando as mãos. (Importa mais a temperatura da pele que a habilidade em mexer). Se tiver unhas grandes não há problemas. Que os resíduos penetrem sob elas, sujando-as. Continue a sovar, a dar volume... Adicione céu a gosto, olhos, agosto, uma pitada de firmamento em pó previamente dissolvido em água morna.

Quase pronto. Agora é assim: é entender que não há feiúra que resista a bons olhos, nem beleza que lhes suporte a indiferença. Entendido isso aqueça o forno, unte uma assadeira de furo, ponha a massa e asse. Se não ficar bonito, torne-o. Se ficar lindo, o reverencie. Sirva. (Deve ser comido quente, enquanto o espírito matinal resiste aos afazeres do dia).

CRÔNICA DO DIA.


LURDINHA ANOS 70

Parecia uma travesti. Ora, não se trata de uma crítica, ao contrário, para ela o termo assentava como elogio. Isso porque era esguia, exuberante, sempre “vestida para matar”. Unhas e humor no mesmo nível, afiados.

Guarda-roupa vintage, aliás, trintage; desfilava modelitos guardados com esmero desde o fim da era hippie. Dancing days repaginados (graças a Deus sem as polainas) e rico em paetês, verniz, mega-colares e afins.

Intrigava-me. Contudo, era bom estar com ela. Quarentona, corpinho de 38, maturidade de 50 e espírito de 25, total 153 (mas 153 o quê?). Ah, 153 cores de baton, sempre em tons vermelho-escândalo, 153 pares de sapato (todos muito altos, vibrantes, dramáticos), 153 calças coladas com 153 estampas diferentes, além de uns 1153 adereços resgatados do fundo do baú. O conjunto empolgava, dava-lhe certa irreverência.

O desavisado, que passe agora por aqui, e com muita pressa, vai se precipitar ao julgá-la uma alegoria. Que nada! A mulher era uma reinvenção constante. De si mesma, do mundo, do que esperavam dela.

Bonita e exótica cairiam bem. (Os atrevidos diriam tratar-se de uma bicha que deu certo; nasceu mulher!). Eu, humildemente, atribuí a ela um posto mitológico. Ninfa atemporal, impoluta, liberta do alheio. Ensinou-me que o espírito é o guarda-roupa do tempo, que o melhor traje é aquele que te mostra livre, inteiro e vivo; mais parecido com o que - de fato - você é.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

CRÔNICA DO DIA.


O TANGO

Perdi-me de mim dia desses; a tarde se escorava nas costas dos prédios, escorregando por entre eles e se espichando sobre o mar. Estava na varanda, mas era o mesmo que não estivesse, tão fisgado que fui pelo inusitado. Uma andorinha solitária prenunciava todos os verãos do futuro.

Minúsculo anjo de prata; reluzente se desvendava seu peito branco contra a luz do dia minguante. (Uma ave com peito prateado merece ser comparada a um querubim). Arremetia com força para o muito alto, levando consigo o meu olhar; arremetia e voltava, em rasante de atordoar.

Fiquei nela - sentidos atados; investigava-lhe as manobras na tentativa de entender, compreender mesmo que de passagem as razões de tamanha alegria; já descrente de que alegria e solidão pudessem coexistir.

Depois de algum tempo consegui desvendar-lhe o balé. O motivo era uma mariposa; dançava tango com ela que, desesperada, tentava livrar-se de seu bico. (Um tango... Nenhuma outra canção se prestaria a uma beleza tão urgente, tão avassaladora). A constatação me desanimou...

O anjo argento passou a ser apenas um pássaro faminto. A alegria imotivada nada mais era que fome, que necessidade; a mariposa, não sei.

Findaram num mergulho rumo ao invisível; e para mim a ausência de desfecho. Quisera saber se a fome subjugou a beleza ou se - terminada a dança - entreolharam-se como antigos amantes, cúmplices e exaustos...

sábado, 1 de agosto de 2009

CRÔNICA DO DIA.


DUPLA IDENTIDADE

Tinha muitos machucados nas mãos. Pequenos cortes, arranhões, perfurações sob as unhas e uma cicatriz de queimadura. Era manhã e olhar para as mãos - vê-las marcadas – decerto lhe pôs desespero no lombo. Olhava, mas não sabia. Via, contudo não atinava. Imaginava.

Levou horas desfiando lembranças, tricotando com fiapos arrancados à força. Bom seria ter enfrentado aventuras – flertar com o perigo, falta de juízo ou medo – e escapado incólume, e com alguns arranhões. Resgatar a vítima, caçar o vilão, retornar a tempo de tirar a capa; dormir um pouco.

Mas a memória, velha rota desgraçada, mostrou-se como é, perversa. Achegou-se lentamente para levar ao chão o império das possibilidades.

Os cortes eram de cacos de vidro. Do copo que se quebrara enquanto era lavado (sangue e espuma). E ainda as picadas de embaixo das unhas e a marca de fogo, besteiras também! A culpa de uma era da pouca habilidade com a agulha, na prega de botão; e a outra, bem, a outra... De fazer vergonha. Conseguira-a na borda de uma assadeira de bolo (estupidez e bolo quente)... Mas, os arranhões? Sim, os arranhões...

Marcas de unhas... (Há os que aqui vão pensar: “Hummm, marcas de unha, heim? Está melhorando!” Mas quê). Eram marcas das próprias unhas. Herança de uma coceira danada. Maldita alergia a sabão em pó...

(Só de vingança ficaria uma semana sem lavar uma peça de roupa sequer).