"PORQUE NARCISO ACHA FEIO O QUE NÃO É ESPELHO" (Caetano Veloso).

terça-feira, 11 de agosto de 2009

CRÔNICA DO DIA.


DICIONÁRIO DE SILÊNCIOS

Cruzou-me a vista um homem em sua bicicleta cargueira. O vi treliçado, dividido, riscado verticalmente pelos gradis da varanda, qual imagem, silhueta que usasse longo pijama listrado, e este pijama se fosse alongando para antes e além dela.

Vinha devagar pela manhã - como pareceu-me ser toda a vida nessa manhã, vagarosa - pedalando delicadamente e sem esforço. Segui-o com os olhos, fazendo-os pesarem no compartimento de carga, dentro do caixote verde-musgo que ele trazia na dianteira de seu veículo.

Tão de leve o olhei que sequer notou os quilos curiosos de meu olhar; tampouco se desequilibrou ou parou para ajeitá-lo entre os poucos pertences que carregava. Foi seguindo displicente, entrecortado, vez ou outra, pelas copas das árvores e troncos dos coqueiros.

Quis imaginar alguma novidade que ele pudesse conduzir. Um peixe grande para o almoço de logo mais, uma coleção de discos antigos com capas engraçadas, um carregamento de pinhas, seis maços de pregos, duas dúzias de ovos de codorna, quatro braços e duas pernas de manequins mutilados, para transformá-los em nova divindade... Meus olhos entre os objetos, coisificados.

Pedalou até levar sua vida para longe de meu continente, deixou para trás as listras que o emolduravam e se perdeu sob a sete-copas da calçada (que, a propósito, exibia-se toda enfeitada, com lindas folhas alaranjadas pontilhado-lhe a copa verde feito fagulhas enormes).

Carregou consigo a calma, para ser reciclada em alguma usina...

Voltei para dentro do apartamento onde o silêncio condimentava o ar e preparava o cozimento da manhã. Só as imagens restavam. Elas e o murmúrio do vento nas frestas da janela, soprando brasas e fazendo arder o grande caldeirão no qual seriam fervidas todas as palavras, até derreterem completamente.

Borbulha, agora, o silêncio... Tem cheiro de lírios, de eternidade...

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