"PORQUE NARCISO ACHA FEIO O QUE NÃO É ESPELHO" (Caetano Veloso).

quarta-feira, 29 de julho de 2009

CRÔNICA DO DIA.

A CIÊNCIA POR TRÁS DO DOCE DE ABÓBORA

Algumas coisas passam sem passar. Ou melhor, os anos passam e certos sabores permanecem atrelados ao momento; não perseguem o tempo nem grudam nele... Acontece isso com doce de abóbora.

Talvez seja necessária uma explicação detida, além de maior clareza de raciocínio. (Tentarei). Vamos aos fatos: Minha mãe fazia o melhor doce de abóbora do mundo. E eu o comia pela manhã (parece estranho, mas na época não) com uma talhada de pão feito em casa. Tinha um sabor de... Saudade? (Na verdade passou a ter esse gosto depois de algum tempo).

Olhe que a ciência da receita não tomaria meia folha de caderno. Abóbora (naturalmente), um pouco de água, açúcar (naturalmente também, vez que se tratava de um doce), dois ou três cravos da índia, panela, fogo e braço. Vê-se de cara que há ciência nisso... Mas, qual? Talvez a ciência da escassez, da inexistência de chocolates, balas de goma, leite condensado, flans metidos a besta, sobremesas prontas. A ciência do suor de uma mãe cansada, mexendo panelas sem parar... De resto é que persigo esse doce de abóbora ao longo da vida. O tempo passou, mas ele não passa.

Provei de ricas iguarias, mas jamais alcancei a mesma sensação. Continuo desejando, buscando um gosto que já não existe. (Talvez porque eu mesmo também não exista e, como desculpa, persiga incessantemente a sombra de um menino que adorava doce de abóbora com pão caseiro).

terça-feira, 28 de julho de 2009

CRÔNICAS ESPARSAS.


O MESTRE DA MÚSICA

Há um filme chamado “O mestre da música”, e esse filme foi determinando em minha vida. Meu primeiro contato com a música clássica – mais precisamente com a ópera – aconteceu no dia em que o assisti. Era noite, nos confins do Mato Grosso do Sul. Um domingo triste.

Trata-se da história de um velho cantor que e precisa encontrar discípulos. Aceita uma aluna e resgata um ladrãozinho de rua, os quais passa a doutrinar. (O enredo é melhor visto do que narrado)...

Mas a música. Ah, a música. Essa fala comigo até hoje, mais de vinte anos depois. Um enigma que me persegue constantemente e sem resposta. Feitiço sem cura, do qual não me livrei nem quis.

Termina com um dueto da “Traviata” que me fez chorar. Chorar muito... Desliguei a televisão e fui para o alpendre, deitar numa rede que ficava de prontidão para quem a quisesse. Era noite, assim como noites tem sido os meus dias desde então (no que se relaciona ao tema).

Não entendia e ainda não entendo a razão de tamanha paixão. Devoção até. Eu era um menino, nascido e criado no sítio, entre vacas e galinhas e, de repente, fui tocado por um encantamento arrebatador... Não deveria gostar de ópera nem chorar por ela, mas o fiz. Eis o que sou a partir de então: estrangeiro em minha própria vida, um estranho em meu corpo, desconhecido completo, irremediável, sem cura e sem endereço fixo.

CRÔNICA DA TARDE.


CABO DAS TORMENTAS

O branco me desafia. A ausência me desafia igualmente, bem como o vazio. Olho para o espaço por preencher e me parece que a folha quer, que ela deseja urgentemente ser violada, anseia por palavras, assuntos, detalhes assustadores e revelações desprovidas de sentido.

Vou lhes contar um segredo: as palavras agarram na gente. É verdade! Escrever é mais que uma escravidão, é um ato de misericórdia e solidariedade. Diria até que é uma espécie rara de exorcismo, conhecida por poucos. (Ah seu os religiosos conservadores soubessem... “Um padre nosso, três ave-marias, um copo de água benta e doze páginas escritas, sem falta”... Todos os demônios purgados, derretidos em tinta de caneta).

Ceifei muitas vidas e gerei outras tantas, e tudo sem sair de casa, sem mover um músculo que não os necessários ao pesado exercício da escrita. Gosto de brincar de Deus (e aproveito para desafiá-Lo de uma maneira bem sutil, exercendo o que Ele me deu sem saber que era uma arma. Ou sabia?)). Creio sinceramente que deve Ele rir das minhas bestagens...

...O mar todo matizado. Azuis, faixas arenosas, espuma e verdes cá e lá. Mas isso é desimportante, porque o meu oceano é uma folha em branco onde naufraguei, e as palavras são destroços de minha embarcação. Hei de ser salvo por elas, resgatado por elas, pois elas mesmas me conduziram a este ponto: o porto definitivo, o meu cabo das tormentas.

CRÔNICA DO DIA.


ORIGAMI

Meus vizinhos são quase todos idosos. Passo dias sem ouvir ruídos; tal fato me convence de que a pacificação e o silêncio são signos do tempo. Falar é uma prerrogativa dos que não aprenderam o suficiente; uma forma de interiorizar, de acreditar no discurso e de vencer pelo volume.

Com os velhos não! A idade os amaciou, ensinou-lhes tudo o quanto foi preciso e em certo ponto chegaram à essa luminosa conclusão. (Amadurecer com sabedoria é um prêmio cujo troféu é feito de silêncios).

Gosto mesmo desses vizinhos. Gosto a ponto de percorrer os elevadores (mesmo quando não é necessário) na tentativa de encontrá-los, trocar um “dedinho de prosa”. (Me enriqueço mais em quinze andares de conversa do que em seis horas de noticiário. E vale, isso sim, vale!).

Dia desses um – cabelinhos branquíssimos - me perguntou logo de manhã: “O senhor não costuma ir à praia?” Atordoado pelo excesso de respeito respondi uma desculpa qualquer; e ele riu para mim. Ri de volta, tentando imaginar os sinuosos caminhos que houvéramos percorrido antes de adentrar o elevador. (A vida nos vai, secretamente, dobrando).

(Restou-me a bonita a imagem desse homem velho). Em cada ruga daquele rosto, em cada vinco daquela pele sentida, residem as mãos do tempo. As dobras que ele fez sobre o papel do destino, tornando o homem aquilo que é: um belo e frágil pássaro de papel, prestes a voar.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

CRÔNICA DO DIA.


LETARGIA

Corpo estendido, largado de um lado. Vida que se arrastava por debaixo das portas, feito quisesse vazar. Nata de melancolia empoeirando os móveis. Sentiu-se imergindo vagarosamente para dentro (mas, de onde?).

Dormira mal e mal estavam os sentimentos, as vontades, o ânimo e o vigor. Lembrou-se de haver sonhado com pescarias, com boas pescarias em lugares azuis. (O mundo deveria ser um lugar azul. Azul-turquesa).

Depois olhou para os pés e para as mãos. Hastes perpassavam os primeiros, pondo-lhes raízes nas pontas e na base; e galhos brotavam de suas mãos, com folhas amareladas nas pontas deles.

Poderia se tornar uma daquelas encantadoras árvores do hemisfério norte (daquelas cujas belas folhas avermelhadas estendem a beleza até o chão), mas não. Estava se tornando um fícus ou um jequitibá, ou mesmo um jenipapeiro. (E amarelava, desfolhava-se até o fundo, perpetuando ramos, galhos secos e tristes arranhando o teto e espantando os pássaros).

Vegetal. Musgo sobre os galhos-ombros, casca-pele ressequida. Todos os sinais confirmavam definitivamente o que era, o que se tornara.

“Voilá”: um machado serviria. Uma serra, talvez; o machado sem dúvida. Cortaria o tronco da árvore que se tornara; tombaria de encontro ao despertar. O baque faria voar a folha, o musgo restantes. Vestígios que lhe fariam ver: não eram folhas nem musgo. Era caspa, cabelos e pele morta.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

CRÔNICA DO DIA.

O SOFÁ

Tudo em silêncio, só o silêncio que não. Silêncio que não era paz, nem sossego e nem descanso. Estava ocupado demais em se preservar.

Olhou em volta para o amontoado de coisas desordenadas. Sentia-se assim, algo desordenado também. Via-se com imenso novelo sobre o colo e preservava o secreto conhecimento dos mistérios casuais. Mais cedo ou mais tarde a ponta viria e seria capaz de esticar todo o fio, fazer um varal com ele, estender as roupas molhadas e mandar a vida ir.

Mas aquele momento de silêncio pesado comprimia-lhe o peito de forma que respirar... Arfadas, somente arfadas, baforadas – reinvenção de tuberculose crônica, nascida no íntimo. Contaminara toda a casa.

Concluiu que não aprendera corretamente a lidar com a vida prática. Sabia um bocado de alma e de angústia e de segredos internos. Das praticidades, praticamente nada. (Já era muito, aliás). E tinha ainda o fio...

Então foi se estirando sobre os móveis. Ficando para cima de uma poltrona, emendando-se aos tapetes, mimetizando paredes e portas e vidraças e objetos mais. Copulando com o silêncio e se emprenhando.

Até que entraram de repente em sua casa, (depois de muito que havia desaparecido). Encontraram no centro da sala um estranho objeto feito de carne e silêncio. Espécie assimétrica de assento, útil ao local.

Era o seu corpo (mas sem a alma). Belo e grotesco. Um sofá desalmado.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

CRÔNICA DO DIA.


QUANDO EU GANHAR NA LOTERIA

Duvido que exista alguém que jamais tenha devotado minutos de seu dia à construção de sonhos relacionados ao prêmio gordo da mega-sena. Se existe eu não conheço! Ora, que 48 milhões dão para uma boa festa...

Vou ficar bem quieto. Primeiro é isso. Me meto num desses hotéis caros, aliás, num spa (não para emagrecer. Eu não preciso), de preferência um que tenha todos os sossegos imagináveis à disposição. Massagem disso, banho daquilo, vinho de acolá, safra de não sei quando, tratamento anti-tudo e, claro, um quarto com vista. Vista para um lago, que tal?

Nisso eu gasto uns dias; vou ficar engrouvinhado de tanto banho de imersão. Depois toco adiante com as pequenezas que tenho sonhado:

Uma bela casa para os cães (a pug Lolla e o golden retriever Flúvio), e um quintal gramado onde possam ser cães de verdade. Em volta da casa haverá um sítio e dentro do sítio um corredor de palmeiras imperiais - caminho de lajotas vermelhas - e em torno de tudo o grande muro de pedra-canga terminando em portão de ferro-fundido. Arabescos antigos como todo o lugar, como suas árvores frutíferas perfumando as manhãs.

Galinheiro caprichado para os faisões (que não serão comidos), horta de fazer gosto e uma piscina para que as visitas se refresquem na churrascada de domingo. (É meio brega, mas 48 milhões não evitam isso).

Para mim? Ah, não pensei nisso ainda. (Acho que vou morar com os cães).

terça-feira, 21 de julho de 2009

CRÔNICA DO DIA.


A MINHA VERSÃO OFICIAL

Nas proximidades do hotel Recife o mar me desvenda as razões do nome da cidade. É lá que, nos dias de maré-baixa, deixa aparecer enormes costelas de pedra. Penso que, se escavado, o local revelaria um colosso de rochas deitado desde imemoriais eras. Gosto dessa fantasia porque ela é minha. Ninguém me revelou tal segredo. Eu o inventei e por isso tem uma cor especial. O nome da cidade... Para explicá-lo deve haver ao menos uma versão oficial. Que me interessam as versões oficiais?

Algum dia, quando o mar estiver acanhado – perseguindo uma lua oculta para além do horizonte - o gigante de rocha despertará. Será um dia de susto e comoção. Os vendedores de caldinho serão os primeiros a correrem. Os seguirão os banhistas da primeira hora e por último pararão os carros, deixando a avenida imersa em caos. Todos vislumbrarão, admirados, o titã sacudindo de sobre sua pele os musgos, as algas, os restos de conchas e os pequenos siris que se acoitam nas reentrâncias.

Nesse dia estarei por perto. Vou me deter um tempo em sua face pétrea, e quando me encarar não terei dúvida em seduzi-lo: “Uma água de coco?” (Há de aceitar. Não conheço quem resista a um convite desses, especialmente depois de ter dormido por tanto tempo sob a água salgada desse mar que não tem fim). Trocaremos segredos e causos... Incrédulos, os passantes seguirão suas vidas... (Como se nada tivesse acontecido).

segunda-feira, 20 de julho de 2009

CRÔNICA DO DIA.


É O QUE ME INTERESSA

Lenine é um dos pernambucanos mais interessantes que eu conheço (ao menos da última década, porque se retroagirmos vira covardia: Bandeira, Paulo Freire, João Cabral etc. etc.)... Voltando a ele, algumas de minhas canções favoritas desfilam por sua bela voz, ganhando contornos que se estendem para além do significado. É assim com: “É o que me interessa”.

Resolvi falar dessa belíssima letra. É tocante (e chega a comover quando casada à melodia). Recorri a ela porque o dia merece, o instante merece e o mar azul de lá fora - lindo de incomodar – também merece.

Acordei bem cedo para caminhar. Andei pela praia observando coisas que normalmente deixaria passar. A mulher que passeava com seu cãozinho pug – o Bob – me descreveu com ricos detalhes as delícias de tê-lo como filho, depois de já ter criado um outro - esse, humano, com quase vinte anos. Gostei. (Ainda vou ter um desses, ah se vou. E vai se chamar Lolla).

Voltei num aperto danado. Não! Não foi nada na alma, mas nos intestinos. Olha que o assunto foi feio. Quase que o elevador se deu mal. No fim, entre mortos e feridos, todos bem e – graças a Deus – limpos...

Eu falava da música... Ela traduziu o dia. Lembrou-me que a sobra do passado, bem como a sombra do futuro não são capazes de me assombrar... O silêncio pequeno das coisas simples, só isso me mobiliza!

“Quando eu olhar pro lado eu quero estar cercado só de quem me interessa”.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

CRÔNICA DA TARDE.


OVO

Comprei ovos no supermercado (crônicas de sexta-feira, as pobres vêm dos guichês, das gôndolas, seções de hortifruti e das filas, mas hoje não). Isso me fez pensar que somos frágeis e, à parte isso, conseguimos conter sistemas solares, nebulosas, estrelas e buracos-negros. É bom ser ovo!

Bem verdade que somos ovo de uma maneira diferente do próprio ovo. O calor, a tensão, a pressão externos são capazes de nos enrijecer, mas (digo por mim) não nos endurecem por completo e - boa paga – permite que sigamos um mínimo menos quebradiços. (É bom ser ovo?).

Sarei um pouco do meu mal inexplicável. Matei com biscoitos de gergelim os bichos que me devoravam de dentro para fora (eram vermes de um tipo muito raro. Vermes de inquietude e de alma), e já me sinto capaz de interpretar as delícias de um ovo (que vão além da fritura, da omelete, do cozimento e da maionese caipira). (É bom ser ovo?)

De vez em quando preciso daquelas embalagens de papelão azul (ou de uma dessas modernas, alaranjadas, espécie de isopor) para proteger minhas cascas de impactos exteriores (embora entenda que para o caso desse ovo aqui, o impacto tem aspectos de implosão). É bom ser ovo?

Comprei logo uma dúzia e meia dos grandões, vermelhos (se bem que considere a cor mais para marrom); os trouxe fora do carrinho, e com elevado zelo. Chegaram inteiros em casa, assim como eu. É bom ser ovo!

CRÔNICA DO DIA.


VENTO

Já assoviam as janelas.

O inverno do nordeste é muito peculiar. Não há frio, apenas chuva. Nos dias chuvosos algumas ruas e (todos) os canais do Recife ficam cheinhos; parece até que o mar avançou, que venceu as rochas do quebra-mar e foi lamber a barra das saias da cidade, lavar os pés dos automóveis.

Mas o que surpreende mesmo é o vento. Entenda bem: sempre venta por aqui, sempre. Entretanto, com o final do inverno chegam ventos raivosos, atrevidos e persistentes. De doer tímpanos e botar em cheque a lucidez.

Encontram frestas por todos os lados e vão se esgueirando, assoviando tristemente dentro delas. Assoviam músicas de esquecer, de loucura, canções d’África, angústias de outros tempos e anseios do por vir.

O que sabem eles, que tanto tentam confessar? Que nomes arrastaram sobre a superfície das águas, roubados de marinheiros saudosos? Varrem toda a casa, violam todos os sons, perseveram ao longo do dia um cantar desesperador, sem palavras e sem sentido, porém agudo.

Mais de um ano; segunda estação de ventos no Recife e ainda assim não me acostumo. É muito sibilo, muito murmúrio, é lamento que não se acaba... Minhas urgências, pequenas alegrias, meu sem fim de coisas por explodir, minha calma exasperada, cozidos no azeite da resignação. (O vento leva para longe meu cheiro de alho... Quisera estar menos temperado).

quinta-feira, 16 de julho de 2009

CRÔNICA DO DIA.


URDIDURA

Fez uma mala. Não propriamente mala. Uma sacola de couro. Bem vistosa ficou – exótica -, porém o importante não era o resultado estético ao final, mas o processo, o desejo e a descoberta de que era possível.

Primeiro mediu com esmero, planejou cada ínfimo detalhe, depois cortou sobre os traços de caneta, pontilhou carreirinhas de pingos onde deveria perfurar e, por último, foi unindo os pedaços com cola, agulha e cordão. Reflexão para dois ou três dias inteiros; dedos furados, alma vazando.

Enquanto urdia - trançava linhas em tramas delicadas - pensava que mesmo as tarefas puramente mecânicas têm significado e se assemelham grandemente à vida. (Queria aprender, penetrar em tais significados).

Descobriu que viver é um eterno exercício de medir, emendar, colar e costurar. Medem-se as palavras, o dinheiro do mês, os dias para o fim-de-semana... Emendam-se vidas, desejos, alegrias, destinos. Colam-se os sonhos quebrados, a memória se cola ao passado e a esperança ao futuro. E tudo o que está para além da mão, costura-se bem apertado de forma que as partes se aproximem e se torne mais fácil de alcançar.

Ao cabo, a peça pronta o fez enxergar que tudo que fizera fora tramado para enganar o tempo. Para evitar que sua fome viesse a lhe devorar.

Uma tarefa qualquer esconde em seu íntimo o verdadeiro sentido de existir: dominar o destino, governá-lo, para que ele não nos desgoverne.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

CRÔNICA DO DIA.


ILUSÕES

Medo. Medo de não ser ou de ser. Semente negra cultivada ao longo dos anos no recôndito terreno das inseguranças íntimas. Tem raiz profunda.

Houvesse sido inconseqüente pela vida, trançado pernas nela e ignorado a censura (especialmente a autocensura), talvez fosse capaz de encarar com generosidade a enorme caixa de papéis que mantém escondida.

Todos dizem que sim, mas a voz interna se entrepõe – carrasca – dizendo que não, que não deve, que não pode, que não faça.

Examinar os papéis trancafiados, todos os escritos escondidos, furtados dos olhos e do julgamento alheios se revela uma dor danada de suportar. Corcunda enorme, porém invisível, castigando cada um dos dias como imenso silício. Os versos olham de volta e perguntaam: quando? Sem resposta. Só o silêncio conversa com eles, o silêncio e alguma tristeza.

Mas haverá um dia em que gritarão, escoicearão o peito até romperem placidez e resignação com um só golpe, e nesse dia terá de decidir: ou os queima, ou os enfrenta de uma vez. Até que chegue esse hora crucial perseverará o estado vegetativo do espírito inquieto, o que se contenta com migalhas pessoais, de si, para si e para o nada, para mais ninguém.

Pequenas alegrias travestidas. Lê e relê cada uma delas como se fossem portadoras da salvação. Resta-lhe um único e gelado conforto, e a certeza de que quando nada se tem, tem-se a ilusão de tudo. Ilusão-veneno.

terça-feira, 14 de julho de 2009

CRÔNICA DA TARDE.


FLAMBOIAIÃ

Em frente à casa havia um flamboaiã dos grandes. Bem verdade, seria impossível precisar; poderia não ser grande à época, porque os olhos que se admiravam eram de criança. (O mundo é sempre imenso para elas).

Certa época do ano a árvore punha brotos lindos, semelhantes a rendas, verdinhas de fazer gosto. (Objeto de brincar). Crianças de sítio desprovidas dos brinquedos do comércio tradicional, se arrumam como podem, e as folhas novas se mostravam adequadas às suas fantasias.

Para colhê-las faziam o seguinte: a prima espreitava que as mães não aparecessem e ele escalava rapidamente o tronco, alcançava o melhor galho e de lá ia deitando ao chão as toalhinhas rendadas. Outras vezes ela é quem subia, meio desajeitada. Queria mostrar que podia.

Certa feita a prima despencou de um dos galhos. O tal estava seco, apodrecido e não agüentou o corpinho dela. Partiu-se. Ambos ao chão. Ao ouvirem o choro as mães correram esbaforidas. Estava ela branca, chorava mais pelo medo que pela dor. Levaram broncas, promessa de surra e se afastaram da árvore por uns dias. Ressabiados, ansiosos.

Veio o tempo e os cresceu. Ele para um lado, ela para outro. O machado tomou-lhes o flamboaiã e boa parte das lembranças. Outras, entretanto, resistem feito calos, cicatrizes ou pinos. Metal imaginário, preso a ossos quebrados em outros tantos tombos que jamais chegaram a acontecer.

CRÔNICA DO DIA.


COISAS QUE NÃO SE APRENDE NOS LIVROS

Tenho sofrido de crônica. Não, não é isso! Não é de dor crônica ou doença que o valha. Sofrer de crônica é sofrer por muita crônica ou por pouca crônica. Vontade de falar todas as coisas; ainda que as palavras não saiam e as letras não grudem, briguem entre si. Invento um título.

Bom, um de cada vez; e se precisa ser assim, vamos ao dilema da manhã: “coisas que não se aprende nos livros”. É o título. Ora, foi o que me ocorreu. Achei bonito, enigmático, dá para colar nele um rabo deste tamanho, deixá-lo garboso (nossa, garboso é uma palavra de minha avó, vou anotar e usar mais, senão embolora), pavão da hora; veio me acudir.

Certo, mas quais são as tais coisas que não se aprende nos livros? Ah, vou lá saber... Bom, como fui eu o inventor desse assunto, vou arriscar uma: beliscão de mãe, depois que a gente é de adulto, não dói. É... Legal... Desafio todas as mães do mundo a beliscarem seus filhos adultos; (vai ser nossa vingança). Ninguém vai chorar nem deixar de fazer arte. Ninaninanina... (Ai, desculpa, ai, é brincadeira, mãe. Ai, não me belisca que dói. Pelamordideus. No meu irmão a senhora não faz isso, né?).

Voltando ao início: “coisas que não se aprende nos livros”. Item 2, parágrafo único: Ao desafiar sua mãe, faça isso quando ela estiver longe. Item 3: vigie para que ela não tenha unhas grandes. Item 4: se ela vier, corra (anda molóide). E a crônica sai do nada (melhor, nasce de um título).

segunda-feira, 13 de julho de 2009

CRÔNICA DA TARDE.


SOBRE GELO FINO

Às vezes me pergunto qual a razão. Qual a razão de manter um blog, por exemplo? Qual a razão desse exercício narcisista, desse desespero obcecado em expor sentimentos, opiniões, vísceras emocionais? Chega a ser uma escravidão, mas ela é deliciosa e ocupa os espaços que a sanidade vai cedendo ao mundo e ao cotidiano.

Perguntas para as quais raramente encontro respostas. Pois veja bem, mesmo quando se trata exclusivamente de uma opinião sobre o alheio, ainda assim se transforma em evisceração pública, terrivelmente íntima.

Agarro-me à justificativa mais cômoda, a que está à mão na hora do aperto. Ela me salva do afogamento em dúvidas e da desistência imediata. É assim porque tem de ser. Os textos são brotos de angústia, pedaços de insanidade ceifados e expostos a quem os queira ver.

É preciso coragem para um espelho tão gigantesco e real. Mostrar-se, prostrar-se diante da crítica alheia de forma que ela nos acerte de jeito. Na boca do estômago. Se não for assim, não faça. Não se atreva!

Um blog é um lago congelado onde o que está na superfície revela pouco (ou quase nada) de quem o escreve. Resta o oculto, o submerso sobre águas frias e profundas... Merece duas observações: para quem o produz, é aguardar que alguém se afogue nele; e para quem o lê, aceitar o risco iminente de caminhar sobre gelo fino. E só... (Como se não bastasse).

CRÔNICA DO DIA.


DONA BOLINHA

Carinha redonda, dentinhos postos com esmero (notava-se que não eram seus, ou melhor, deveriam ser, vez que estavam em sua boca). Gorro de meia-calça cobria-lhe a cabeça, deixando escapar um franjão de koleston. Nome esquisito o dela, impossível de guardar. Serelepe, pinoteava cá e lá, espremendo olhos sobre os estranhos e os querendo comer.

Deve ter sido profissional, pois em dois minutos fora capaz de reconhecer a ascendência européia de seus visitantes. Profissa, à vera!

Mas o que arrebatava os olhos era o estado em que vivia. De perdição, de entrega, de abandono e desordem. De fazer dó. Roupas sujas por todos os lados, monturos surrealistas – esculturas de pano -, vestidos, blusas, intimidades, tudo ao gosto do freguês, à mão. Não viam ordem desde muito. Como era capaz de viver em meio àquilo tudo? Como respirava?

Olha que o bom coração chegou a imaginar que pudesse estar doente, que pudesse ser vítima de moléstia grave, que a pusesse incapaz de realizar as tarefas do dia. Que nada! Era o costume. O costume com a desordem e com o caos, e também com a caraca de gordura de sobre o fogão... Aquilo sim é que é viver. Descompromisso completo, liberdade.

Dona bolinha não fez conta de receber gente em casa em meio á imundice. Devota de Eris, certamente, ou ela mesma... Deusa do caos, cujos dentinhos brancos contrastavam com a sujeira de todo o resto.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

CRÔNICA DA TARDE.


COCOTA CINQUENTONA

Fila de supermercado é local insólito, dos mais insólitos, devo dizer. Espaço onde se reúnem tipos comuns e incomuns.

O negócio é que estava lá eu – carrinho cheio, saco cheio – esperando a minha vez. Me envolvi com alguma revista de culinária (ou de fofoca), dessas que ficam próximas ao caixa justamente para evitar que a gente se aborreça com a espera e desista das compras, e sequer atinei para a figura que, à minha frente, depositava seus víveres sobre a esteira.

Contudo, por mais que estivesse envolvido por uma daquelas capas apelativas, chegou uma hora que não pude deixar de notar a senhora que descarregava seu carrinho. Miúda, aparentando uns cinquenta e poucos, faceirinha, boca vermelha, movia-se lépida; mais apressada que eu.

Passaria por uma senhorinha de cinqüenta e poucos anos não fossem as alegorias e adereços (pensei no locutor da liga das escolas de samba do Rio de Janeiro, falando dentro balde: alegorias e adereços, nota dez! E a galera explodindo). É, o caso dela era mais grave. (Ele de novo: Nota seis).

Blusa da filha caçula (mostrando a barriguinha), bermuda da neta (Deus é justo, mas aquela bermuda não fica atrás), elástico colorido no cabelo e rasteirinha Gisele Bundchem no pé. Eu agüento? E pagando cofrinho. (Quase depositei umas moedas para facilitar o troco, mas ia dar briga. Ah, se ia...) E ainda as tatuagens das ancas, mas isso é covardia... Tenha dó!

CRÔNICA DO DIA.


COISAS SUJAS, INÚTEIS E BELAS

Revirando gavetas encontrou uma caixinha que julgava desaparecida desde sempre. Madrepérola ou madeira ou papelão. De que era? Ao abri-la teve a impressão de que jamais houvera existido, tamanha matéria de encantamento que ocultava. Deveria ser mítica; Pandora ao contrário.

Melhor que não a tivesse encontrado, chegou a pensar. Mas foi tanto o enlevo e tão intensa a sedução que não resistiu aos seus apelos e foi penetrando dedos curiosos, revirando magias nela contidas, dela.

O espelhinho de bolso, oval; pente flamengo (que igual já não se vê); canetinhas hidrocor secas de fazer dó (muito álcool, muito álcool... Vão vazar três folhas) e um palito premiado de picolé Kibom (Deus, que desperdício, será que o trocariam por outro, um de limão?).

É para se pensar... Para onde os tais amuletos mágicos conduziriam? Eras enterradas, sentimentos idos e memórias que julgava desconhecer. (Como, se eram memórias?). Desconhecia. Havia crescido, encorpado, ganhado idade, e aqueles objetos tinham um significado doído e distante.

Caixinha blindada contra a pressa... O espelhinho - o olhar para trás, o pente de endireitar cabelos desaninhados pela velocidade dos dias, canetinhas para botar cor sobre o sépia dos olhos opacos e um palito premiado para lembrar que no cerne das coisas boas ainda pode haver mais... Tudo empoeirado, tudo sujo e inútil, porém belo, inesquecível.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

CRÔNICA DA TARDE.

GAMBÁ

Um gambá assombrava minhas noites ribeirão-pretanas. O condomínio onde morava era bucólico e minha casa dividia muro com a pracinha do local. Bonito de dar gosto, e o bicho também deveria pensar assim.

Boa parte de minhas noites, as que estivesse sozinho em casa, as gastava no quintal. Preparava comidinhas de solidão, tomava gim, bebia saudade e escrevia o que viesse à telha. Não tardava e ele aparecia. Vinha de local ignorado. Não fosse eu o teria visitado e preparado o maior susto.

Pois bem, estivesse eu entretido; pronto. De repente a arruaça na pitangueira. Era ele. Descia pelo muro, alcançava a árvore e dela subia para o telhado, percorrendo-o todo com grande urgência. Sem cerimônias o danado atravessava o caramanchão de madeira e vinha se resfolegar na calha bem acima de minha cabeça. Diabos! Filho da mãe!

Apreensivo. Não que tivesse alguma fobia existencial de gambás, mas aquilo me incomodava à pampa. (Arranhava). Suas unhinhas, o som rascante delas no metal, e ainda os passinhos despreocupados, como se eu não existisse. Convenhamos, aquilo era folga para mais de metro.

A vida é realmente muito engraçada. Lembrar agora desse gambazinho me fez pensar que durante as noites em que fiquei sozinho por lá ele foi minha única visita. Não o tratei como devia. Hoje ele faria a festa, teria de um tudo, ovos goros inclusive (e conversaríamos até o sol, até o sol).

CRÔNICA DO DIA.


DE MÃOZINHAS DADAS

Pela manhã muita gente caminha no calçadão. Há os que correm, evidentemente. Querem manter o corpo em cima; tanquinho, coxão, peitão, bumbuns durinhos, sarados (verão chegando à toda).

Mas o que realmente me chama a atenção são os casais antigos. Velhos e belos como lembranças de sítio. Os que vão deslizando devagar. Esses que não têm pressa, que seguem com lento prazer, observando detidamente os detalhes que escapam à maioria de nós; carros na avenida, cães marcando os coqueiros, o movimento delicado da maré.

Tranqüilos, vão deixando a sensação de que igualmente tranquila lhes foi a existência. Evidente que não. Tranqüilidade perene? Nada... Mansidão é o que ora carregam... Vencidos os atropelos, rompantes, emergências da juventude; apenas mansidão como herança, paz compartilhada, diferenças equacionadas pelos anos. Aplacação. Paixão transformada em... Não sei. Amor? Amor em tonel de carvalho. Curtido, mais saboroso!

De mãozinhas dadas vão sendo ultrapassados. O rapaz pernudo, depois a moça dos peitões, o jovenzinho com seu boné de lado, o cuidador de cães, o vendedor de frutas. Todos para além deles e eles resistindo, aproveitando a brisa e o calor da pele um do outro. É o que basta, o calor.

E eu penso, no meio de minhas urgências cotidianas: estou seguindo na direção certa ou só estou correndo? Peitão, pernão, bundão? Não. Coração!

quarta-feira, 8 de julho de 2009

CRÔNICA DA TARDE.


LUA

Tem uma lua nascendo dentro da minha sacada. Parece exagero mas é isso mesmo. A bicha tem feito ninho por aqui. Acorda por volta de seis da tarde e se acomoda nas poltronas; no meu banco favorito também. Vem entrando sem respeitar janela, porta, vidro nenhum. Ousada!

Tem cabelos longos e loiros. Desde lá de cima escorrega para dentro como se eu fosse o único a lhe querer (ou como se quisesse somente a mim). Espécie de Midas, mas o metal que ela gera não é ouro, é prata. Que importa? Pois se ainda assim sou rico, não reclamo.

Vive me chamando, convidando para dançar. Dar uns bordejos à beira mar, catar umas conchas, tomar de um coco depois do passeio.

Tenta que eu quero ver! (Sempre penso). Tenha cuidado não, dona, que hora dessas eu lhe atraco! E ela nem aí. Provoca. Deita nas palmeiras, goza sobre as ondas calmas, se enrola nos meus olhos sequiosos e me põe saudades na pele, nas axilas, coxas, embaixo da língua.

É um brilho que não acaba, uma luz que não se entrega às nuvens, uma presença devotada, de todas as noites caídas, uma urgência que tem de me encontrar, de me encantar.

Ela me quer e eu a desejo. Tirasse o São Jorge – com cavalo e dragão – de seu lombo e eu ia, ah se ia. Ia dormir com ela... Não há meio, e é por isso que ela me atiça. Quer que eu me atire. Tá louca! São quinze andares...

CRÔNICA DO DIA.


JOÃO-DE-BARRO

O poeta pantaneiro Manoel de Barros sempre me emociona. Quando quero ter contato com a beleza, vou nele. Deve ser pequeno e cheiroso esse senhor; ao menos seus versos o são e (segundo minhas fantasias) a obra é o corpo etéreo do homem. Seu reflexo ou ele mesmo.

Tem um jeito de arranjar os significados que é quase arquitetura. Vê bem! Não se trata de arquitetura de régua, ferro e concreto, mas de passarinho, de ninho, gravetos, palha e folhas secas; filhotes sem pena – famintos - e insetos regurgitados pela mãe.

Fala de uma maneira tão absurdamente simples que chega a ofender. Isso quem lhe deu foi a vida no meio do gado, olhar detido nas vazantes, a experiência de lagartear o sol do pantanal e o cheiro do esterco fresco nas pastagens. Ninguém que escreva como ele nasceu sabendo. É fruto de transcender, extrapolar o sentido das coisas, emprenhá-las.

Me socorre. Me socorre muito. Quando não me encontro com o sentimento correto, ou ainda quando não consigo botar palavra na boca de uma angústia, farejo seu rastro. Sabujo. Vou lamber-lhe os pés e lambuzar-lhe os poemas com saliva. Admiração, respeito e fé.

Acredito nele, pois é impossível desconfiar de quem permanece nascente depois de tantas alvoradas. Ele me salva... Um dia há de ser passarinho.

Melhor que seja joão-de-barro... (Só para preservar o nome de família).

terça-feira, 7 de julho de 2009

CRÔNICA DA TARDE.


BRECHÓ

A velha se confunde com os cacarecos que vende. Poderia não ser, contudo é; é, mesmo porque não se esforça nada para deixar de ser coisa, de ser também um objeto. Há bolor em suas palavras e mofo sobre seu olhar de pouca simpatia. Humor gasto, carcomido, empoeirado a valer.

Tudo em promoção, faz questão de ressaltar. A pechiché de mil e quinhentos, sai por mil, “porque quero passar o ponto”. Também vale para pratas, faianças. Do que é seu, tudo tem cinqüenta por cento de desconto, até os quadros (exceto um, que é de um homem que pede mais de milhão por ele. Já se viu? Ô bicho besta!) e o que mais eu queira.

Pensei em regatear um belo achado; não avancei! Somadas as idades de cada objeto a venda, o resultado atravessaria todos os papados e iria ter com Pedro. E eu pesado, somando-me a eles, prestes a completar anos...

Buscava algo que pudesse ser transformado, reinventado. Que eu botasse a mão, algum enfeite, um pouco de pano úmido e se tornasse novidade.

“Tudo é pela idade, meu filho. Quanto mais velho, mais caro”. Explicou-me ela, um pouco ressentida por não fazer parte das contas. É...

O tempo se incumbe. Vai comendo tudo. A velha, as ilusões... (Cupim danado). Resistir é o que resta, para se tentar amealhar algum bom preço.

Mas eu saí sem nada. Sem nada, não! Com uma dúvida: e meu coração usado, perto de 35 anos, quanto vale?

CRÔNICA DO DIA.


O MISTERIOSO SUICÍDIO DO VASO DE ANTÚRIOS

Saltou de sobre a mesa. Assim foi o suicídio do vaso de antúrios. Estivesse desgostoso, vá lá, mas de quê serviu? Sangra seus cacos por todos os lados e ainda no tapete felpudo. Desilusão. Era disso o que sofria? (Sem carta ele se foi, e eu sequer atino sobre seus motivos)...

Olha que fora bem casado, bem casado. Por ele passaram belas flores tropicais que muito lembravam aves ou corais ou mesmo pedras preciosas raríssimas. Girassóis. Mais recentemente é que andava desenxabido, dando colo a uma dúzia de antúrios artificiais, e sem água.

É motivo? Porque eu nunca o apartei definitivamente da beleza. O que eu podia - vez ou outra – era o que lhe dava. Enchia-o com flores de final de semana, companhia para alguns dias; depois o tédio e a artificialidade novamente. (E quem aguentaria beleza ininterrupta, sem fim?)

Bem assim é também a vida. Esta é menos intempestiva sem, contudo, ser inteiramente pacífica. Não há ninguém que eu conheça que já não tenha sonhado com a grandeza de carregar continuadamente, vivas, perfumadas braçadas de rosas carmim, orquídeas, cravos que seja.

Mas as coisas nem sempre são. Nem sempre se tornam; e a gente vai se enfeitando como pode; gerânios de plástico, musgo, cactos de isopor...

Teria se atirado por não suportar artificialidades? (Talvez tenha sido o vento, só o vento da varanda que eu, por descuido, abri). Jamais saberei...

segunda-feira, 6 de julho de 2009

CRÔNICA DA TARDE.


O BOM CONSELHO DO DAPIEVE

O Dapieve disse que o Richie é sofisticado. Que parece simples, óbvio, mas é muito sofisticado. Isso me impressionou, porque, ao que parece o Dapieve não é dos mais generosos.

Então lá fui eu, dar uma vasculhada nas canções do Richie, nas coisas dele das quais eu me lembrava. Coincidência ou não, o Canal Brasil estava apresentando o novo show do cara, gravado em estúdio.

Pensei cá com meus “botons” lá vou eu; sozinho, no escuro, volume reduzido (e que ninguém saiba disso!). Olha, estou pronto para fazer propaganda. Delícia! Músicas melosas, tão 80’s, fossa da braba, da boa.

Ele está com uma cara inglesa (e não é?) de David Bowie, ossuda, bem mais velho, maduro, menos “menina veneno” e mais inédito, sei lá. E os arranjos! Atualizados, bons, lisos (exceto por algum sintetizador – bem 80 também – que ainda me irrita um pouco, mas muito de leve).

Até o decomposto “abajur cor de carne” soou novo (embora decomposto!) e tornou consumível a reedição daquela que já deve ser a “senhora veneno” ou a “vovó veneno”. Lembram do: “boa noite rainha, como vai?” fervendo nas noites globais com a novela “Champagne?” Pois é... Esse também... E mais, mais do mesmo, da melhor lembrança adolescente.

Shy Moom veio com uma lua previsível no cenário; mas Mercy Street, Mercy Street, com essa eu encerro. Não agüento. Tocante... Como jamais.

CRÔNICAS ESPARSAS.


O CASO JOÃO.

João. Sujeito meio sujo e sem parentes. Transitava pela feira de olhos compridos no alheio. Não que o fosse subtrair, mas desejava intimamente alguma migalha.

Comia e dormia por bons favores. Fosse mal, não se mostrava. Bom, tampouco, porque sequer existia. Ficava por lá, ajudando a quem lhe pedisse ou oferecesse um prato, uma noite longe de restos e de ratos.

Certa feita apareceu com história nova. Aposentadoria acumulada de anos, gorda nota. Precisava de ajuda para resgatá-la e pagaria comissão. O por cento renderia uns cinco mil à alma que lhe socorresse; não tardou para encontrar.

Três meses de labuta em que João viajou para cima e para baixo, visitou família interior para encontrar documentos perdidos, certidões. Dinheiro para um advogado, cartórios, almoços, adiantamentos concedidos pela boa alma, não sem o devido acréscimo em suas expectativas.

João inexistia, mas não era bobo. Ao cabo do tempo em que conseguiu manter iludida a alma caridosa, descobriu-se que a tal aposentadoria não existia (assim como João). E os investimentos feitos, a fundo perdido, estavam de fato perdidos, porque o por cento de nada...

Ainda perambula por lá, passeando entre as barracas de frutas. Não é má pessoa, mas, verdade seja dita, o bicho tem lábia, ah, que isso tem!

20COISAS.


20COISAS CUJOS NOMES ME ENCANTAM (MESMO QUE O SIGNIFICADO NEM TANTO)…

1 – Bigorna;
2 – Cutelo;
3 – Ácido;
4 – Mármore;
5 – Masmorra;
6 – Obelisco;
7 – Enzima;
8 – Flamboaiã;
9 – Anêmona;
10 – Libélula;
11 – Almíscar;
12 – Dodecassílabo;
13 – Acetona;
14 – Pélvis;
15 – Omoplata;
16 – Sereno;
17 – Saúva;
18 – Seriguela;
19 – Lâmina;
20 – Escaravelho.

Já pensou sobre isso? Não se trata de encontrar palavras usuais e recorrentes, mas palavras das quais se goste muito. Do som, do sentido, mesmo não gostando da coisa em si.

É um bom exercício e vale.

CRÔNICA DO DIA.


LEITO DE PROCUSTO.

Narra a mitologia que Procusto era um salteador ático, muito cruel, e que possuía em sua casa uma cama, a qual utilizava como espécie de “gabarito” para estabelecer proporções e impingir às suas vítimas terríveis castigos. Depois de saquear algum passante Procusto o aprisionava e fazia com que se deitasse sobre o leito, aferindo-o. A medida exata do homem não deveria exceder o comprimento da cama, tampouco ser-lhe inferior.

Aqueles cuja estatura faltasse para se igualar às proporções almejadas eram desconjuntados e espichados até que seus pés e cabeça estivessem perfeitamente alinhados aos limites do leito. Os demais, desafortunados, portadores de esqueletos longilíneos, alongados para além da conta, e que viessem a exceder as fronteiras de cabeceira e pés da cama, tinham o excesso simplesmente decepado a golpes de machado.

Procusto foi morto por Teseu, herói mitológico, que lhe aplicou o mesmo castigo reservado às suas vítimas.

Socialmente o mito está ligado ao uso da violência com o propósito de aniquilar diferenças e particularidades individuais. Em literatura a lição é outra. O leito serve de régua para que se aprenda a extorquir o máximo de um texto partindo de certo padrão. Há que ser enfeitado, caso algo lhe falte. Excedendo, deve-se às sobras único destino. Mutilação. E ponto.

domingo, 5 de julho de 2009

DA SÉRIE: POESIAS INACABADAS.


AS MÃOS VAZIAS

A fadiga me obriga – é minha regra,
Em minha mão, sua intriga – luva negra,
Vem calar-me antes que diga – se esfrega,
Contra a vontade estendida – e me entrega.

Essa proteção de figa – sorte e sega.
A tatear pela vida – segue a cega,
Tanto mais forte que a liga – se apega
Ao meu coche, à minha biga – se integra.

O sono feito de migas – o que me pega,
Cansaço que me fustiga – e desintegra,
Vem a verdade, investiga – se achega,
Excita, bebe, me castiga – mija e rega.

Fantasias, cinta-liga – dama e frega,
Puta velha, boa amiga – persa e grega,
Goza na minha barriga – sou-lhe a lega,
Enterra-se, rapariga – adentra e prega.

A dolência - única triga – vinho, adega,
Veneno, doença, urtiga – ela me enegra,
Toda a pujança abstraída – a que sonega,
Vai-se na terra vertida – ao chão se agrega.




Esse poema tinha tudo para não dar em nada. Gostava dos versos iniciais, contudo não me crescia assunto para lhe dar. Depois fui olhando para ele e ele para mim, tentando descrever os longos períodos em que o nada nos visita e faz companhia.

Por se tratar de um poema da série dos inacabados, nem ouso imaginar como ou por quê começou, apenas o terminei, como dever de ofício.

CRÔNICA DA TARDE.

DAVID E FRANKENSTEIN

Conta-se que perguntaram a Michelangelo como era seu processo de trabalho e como havia chegado ao David, ao que ele respondeu que se tratava de um exercício muito simples. Primeiro o bloco de mármore. Desse bloco limitara-se a tirar tudo o que não era David.

Como resultado dessa simplicidade nasceu a célebre e imortal obra que atravessa os séculos e permanece encantando, como se estivesse viva e desafiasse o tempo.

Longe, muito, mas muito longe de querer me assemelhar a ele (nem toda a pretensão do mundo me permitiria isso), limito-me ao processo. É nele que esta crônica se detém.

Pois eu faço o seguinte: pego uma palavra, uma só, ou algumas (por vezes é assim, mas é raro), e sobre ela vou atirando coisas. Costuro, soldo, colo, emendo, aplico... Nasce um Frankenstein.

Para dar-lhe aspecto menos grotesco passo a aplicar, aqui e ali, alguma cor. Letras ocres, acentos avermelhados, pausas brancas, sentenças roxas e, por fim, um ponto final negro-escarlate.

Se a peça resistir a toda a carga que lhe imponho, vive. Se não eu a desmonto e junto as partes em caixas de papelão de água sanitária (daquelas que os supermercados descartam), classificando-as por nível de insignificância, teor de besteira, grau de descartabilidade, inutilidade etc.

Minhas esculturas nascem de processos estéreis e de palavras emendadas. Tentáculos de cefalópodes. Assustadores braços. Vou-os amarrando para que não se tornem maiores que o necessário.

O resto é rebuscamento. Esse pecado, esse castigo do qual não consigo me livrar.

(Ou não quero).

CRÔNICA DO DIA.


MICHAEL, FARAH E PINA.

Uma frase. Tenho tentado cercá-la para não lhe ser injusto nem omitir os méritos de seu autor, contudo minhas pesquisas têm se mostrado infrutíferas. Fico com o pouco que apreendi dela, porque deve dar conta de traduzir o que quero dizer (que me perdoe o autor).

“Não há nada mais triste que uma vida que termina em silêncio, sem que ninguém a assista”.

Ele se tornou um mito. E como é próprio dos mitos, teve uma jornada longa e significativa, em direta oposição à vida, extremamente curta e muito conturbada. Tudo já foi dito sobre Michael Jackson e não serei eu o atrevido que tentará contribuir com algo de novo (aliás, tudo já está exaustivamente repetitivo).

A outra, a pantera, enfrentou sua doença com dignidade até ser vencida por ela. Modelo para as mulheres, fascínio para os homens. Farah Fawcett atravessou décadas arrastando atrás de si o signo da beleza simétrica, mas não serão seus belos olhos ou seus cabelos de ouro que a conduzirá para a imortalidade. Será pela coragem, pela determinação que será lembrada. Para Charlie uma nova missão: encontrar uma substituta para Jill Munroe (embora isso não me pareça possível).

Por último (pela ordem das tragédias) a alemã que reinventou o sentido, a didática, a pedagogia da - a e própria - dança. Desenhava histórias, as contava entre um passo e outro, com a sofisticação que só aqueles que muito entendem de simplicidade conseguem imprimir. Simplicidade sofisticada. Sofisticação simplificada (não há mais como saber). Phillippine era o seu nome, mas o mundo a conhecia como Pina. Pina Bausch.

A frase, aquela exaustivamente buscada, serve para estabelecer contraponto e contrastes. Tão triste quanto o silêncio e a solidão é a exploração desmedida do espólio. A violação do corpo e da alma do morto. Para uns o rápido esquecimento, para outros a exumação pública e a exposição de vícios e fraquezas elementares.

O mundo ainda chora pelo ídolo pop que, segundo se sabe, sedimentou diariamente o próprio caminho para o fim a custa de drogas das mais diversas espécies. (É bem verdade que existem especulações às centenas sobre suas razões e ainda pouca verdade acerca de seus temas finais).

Farah Fawcett, ao contrário, vinha de uma longa cruzada no sentido oposto, manter-se, permanecer, resistir. Pouco se falou, como pouco se fala e em breve nada mais será dito.

E Pina. Sequer esteve próxima de receber cinco minutos de honrarias, se somados todos os canais de televisão. Limitaram-se a ela alguns artigos especializados, mensão nessa ou naquela coluna tida como sofisticada, e o silêncio.

Michael Jackson dominou a cena, pondo ausência e silêncio sobre o túmulo das demais. Seus 51 quilos pesando sobre o mundo inteiro. Mas não foi ele...

É o seguinte: a luta de uma sessentona contra o câncer não vende. Os quarenta anos de revolução no mundo da dança, promovidos por outra septuagenária, proviniente da alemanha, também não vende. O que vende é o cheiro de mistério, as tragédias familiares, a fênix afundada em dívidas tentando se reacender, intrigas envolvendo paternidade duvidosa, mudanças de cor, de rosto, de cabelos. A desgraça, o grotesco definhar de um Peter Pan consumido pelo mito.

Vende. Vende mesmo.

Não fosse pelo respeito à obra eu o estaria odiando, tão figurinha repetida que se tornou. Em vez disso, desconforto e pena. Dele Michael, cuja morte se tornou o maior espetáculo de toda a sua carreira. De Farah, que tombou de pé, sem honrarias posteriores, e de Pina que não chegou a render meia página. O mundo é realmente louco!

Como não quero e nem posso, em nome de meu desconforto e em solidariedade a duas grandes mulheres, desprezar o gigantismo da obra de Jackson, encerro com um desabafo: eu não aguento mais... Parem de repetir essa música. Deixem os mortos em paz... Eu odeio “thriller”.

sábado, 4 de julho de 2009

COISAS DE FAMÍLIA.


MINHA SOGRA É UMA PEÇA

Fez 71 anos ontem, e eu morro de inveja dela. Ora, por que não? Admito que sim e tenho minhas razões (e não são poucas).

Algumas palavras que ela não conhece:

1 – Indisposição. Está para a hora. Dia, noite, caminhar, dançar, fazer festa, acudir situações delicadas. Não sei que combustível a move, mas eu quero o mesmo;

2 – Má vontade. Não, para nada. Sempre com um sorriso na frente; seus olhões azuis de mar brilhando meio dia, mesmo que sejam quatro da manhã;

3 – Cansaço. Fosse um soldado, seria o bicho mais difícil de ser abatido, porque só se recolhe depois que o último já se entregou ao sono. E quer mais. Haja energia para acompanhá-la;

4 – Negatividade. Tem sempre algo de bom. Riso fácil, gratuito, amuleto de espantar energias pesadas. Não se pode com as brincadeiras dela; a maior tragédia vira festa;

5 – Preguiça. Diga essa famigerada perto dela e receberá uma sonora lição de como se deve levar a vida.

Não é para ter inveja?

E quando eu disse 71 anos não me referi a uma senhorinha de cabelinhos brancos, curvada, de chinelos e pijamas, dentro de casa.

Certidão de nascimento errada. Essa mulher tem uns 32 anos, se muito. Vívida, alegre, bem resolvida, bom papo, boa mesa, animada com a vida. Madeira de lei, um ipê amarelo florindo a vida de todo mundo. Eu a chamo de Klumtsula e ela, quando eu exagero, grita de lá: cachorrrrrrrrrrro!


Vai viver uns 120 anos nessa batida.

É de dar inveja, com certeza.


(Já estou me arrependendo deste post. Se ela o ler vai ficar insuportável. Rsrsrs).

20 COISAS.


20COISAS INDESCULPÁVEIS PARA SE DIZER (E MOMENTOS INAPROPRIADOS).

1 – “Meus parabéns!” (Se dito num velório, ao parente que chora copiosamente ao lado do morto. E olha que tem gente que, de tão nervosa e ausente de palavras, diz isso mesmo);

2 – “Nossa, não sabia que você tinha um filho tão bonito!”. (Dito a uma mulher de seus quarenta e poucos anos, reencontrada depois de muito tempo junto de seu novo namorado – bem mais jovem – que você ainda não conhecia).

3 – “Eu também te acho muito bacana!” (Quando alguém acaba de dizer que está apaixonado por você);

4 – Meu avô tinha uma igualzinha a essa!” (Para o seu amigo que está se sentindo o máximo com aquela calça roxa boca-de-sino);

5 – “Ah, que nada, você já está pronto para outra!” (No hospital, durante a visita ao amigo que foi atropelado e está com meia dúzia de dentes a menos na boca);

6 – “Não fui eu!” (Quando entram no elevador, sentem aquele odor horrível e a único passageiro até então era você. Cá entre nós isso não é coisa que se faça, mas se fizer, assovie e finja que nada aconteceu);

7 – “Não é o que você está pensando!” (Ao ser flagrado, em qualquer que seja a situação);

8 – “Não fique assim. Acredite, ele(a) só está com o(a) outro(a) por causa do dinheiro dele(a)”.(Tentando consolar o(a) amigo(a) que se descabela depois de ter sido trocado(a));

9 – “Minhas intenções com sua filha são as melhores!” (Ao ser interrompido pelo pai da moça durante uma cena, digamos, um pouco mais quente, no banco de trás do carro, na segunda semana de namoro);

10 – “Eu já esperava por isso!” (Ao ser traído(a). Esperava? Então a coisa é séria mesmo);

11 – “Está bem, eu admito, mas você tem que entender que foi apenas atração física. Com você é amor!” (Cometendo “confessicídio”);

12 – “Isso nunca me aconteceu antes!” (Apesar de valer apenas para os homens, é uma lástima, com certeza);

13 – “Nossa, você ficou ainda mais linda depois de grávida!” (A amiga havia engordado um pouquinho, só isso);

14 – “De dieta? Que bobagem, você é muito simpático e engraçado do jeito que é!” (No almoço, quando o interlocutor de 130kg se esforça para interagir com um prato de salada);

15 – “Ele era um safado mesmo. Até em cima de mim ele deu!” (Se dito à melhor amiga que acaba de se divorciar depois de um casamento de dez anos);

16 – “Que bonitinho, parece de brinquedo. Mas o importante não é o tamanho”. (Na primeira noite com o novo namorado);

17 – “Que bonitinhos, nem precisa de soutien. Parecem com os da minha irmã caçula”. (Na primeira noite com a nova namorada);

18 – “É dos carecas que elas gostam mais!” (Para o amigo que acabou de voltar do dermatologista, desesperado com seu problema de queda de cabelo);

19 – “Imagina, nem ficou tão feio assim. Além do mais ele cresce, e em dois meses e você poderá consertá-lo”. (Para a amiga que acabou de sair do cabeleireiro com aquele corte de cabelo lastimável);

20 – “Fique tranqüilo(a). Só 60% dos casos são fatais”. (Para alguém que acaba de receber a notícia de que está com alguma doença).

É, a última é barra, mas eu não pude evitar.

CRÔNICA DO DIA


DETALHES TÃO PEQUENOS…

Roberto Carlos em um programa de televisão. Pensei no tempo que isso não acontecia e nas razões.

Paulo Coelho (meu Deus, só “medalhões” hoje) escreveu um livro (diga-se de passagem, eu não li) que se chama “O vencedor está só”, e foi a esse título que recorri para tentar desvendar as tais razões de um rei recluso.

O preço da cebola, o filho concluindo a faculdade de matemática, engarrafamentos cada vez maiores, almoço de domingo na casa do compadre (é preciso levar cerveja), rumores sobre um novo confisco da poupança, a escolha das tintas para a reforma da casa no final do ano, a crise que pode chegar ao meu emprego, ao seu... Assuntos que servem de balizadores e nivelam 99% da população em torno da mesma mesa. Rasa, profunda... Cada um que tire as próprias conclusões.

Mas com o que se preocupa Roberto Carlos? Que temas roubam horas de seu sono?

Tenho uma teoria. O vencedor está só porque a ele não é facultado o direito de ser humano. A ele é negada a sagrada pecha - vergonhas e fraquezas coletivas. Ele não pode. Ele não deve. Ele... E por isso se vão elevando os muros e estreitanto as fronteiras; seu mundo se comprimindo. Gaiola do mais raro cristal através da qual se esgueiram nossos olhos aflitos e emocionados tentando avistar, mesmo que de relance, as plumas áureas do pássaro raro.

É digna sua atitude, sábia e também bonita; (e também triste de se ver). Mas quando a maioria é indistinta, siamesa, ao diferente restam duas escolhas: confrontar a massa e ser apedrejado, devorado antropofagicamente por ela, ou encantá-la, subjugá-la, vestir a fantasia de ave mitológica, elevar-se diante de turba e deixá-la em êxtase. Depois tornar à proteção, à gaiola...

“À noite, envolvido no silêncio do seu quarto, antes de dormir”... O que procura Roberto Carlos?

Talvez a liberdade insignificante, essa dona desmazelada, sem nenhuma pintura e de cabelos muito lisos e secos, essa velha silenciosa que nivela a todos nós, mortais comuns, e para a qual não damos a menor importância.

(Mas é só uma teoria).

sexta-feira, 3 de julho de 2009

CRÔNICA DA TARDE.

TRAVA

Acho que sou rebuscado. Dizem que sou. Isso na escrita, no jeito de enfileirar as letrinhas.

Dissessem-me isso há dez anos eu talvez gostasse; aliás, teria gostado muito. Ocorre que na medida da idade (menor a cada dia, como costumo desejar), tenho me esforçado por polir as palavras, limpá-las, dar-lhes um ar de casualidade, como uma calça de sarja cáqui, uma camisa pólo e um mocassim, ou mesmo como uma impecável bacia de ágata (quem não se lembra jamais vai conhecer).

E quando se busca essa abrasão sofrida, quando se tenta retirar delas (das orações) o excesso, e ainda assim o que lhes sobra é puro excesso, dá uma dor do cão.

Porém, não posso negar, na medida que juvenescemos vamos aprendendo analfabetismos novos. Passamos a ter contato com as cavidades secretas de cada frase. Se revelam intimamente de um modo que seja possível apenas para quem as deseja, conhecer-lhes a intimidade. E aí tudo se dana, se confunde.

O que se pretendia simples ganha parecença de enfeite. Colares exagerados... E os olhos deixam de buscar o pau, porque estão muito entretidos com a maquiagem. Ora, mas ainda existe pau. Basta procurar direito, olhar detidamente.

As letras, palavras, as frases têm pau, por mais adornos que carreguem. (São duras).

Travestis de luxo. Lindas, delgadas, provocativas, fascinantes de se ver, mas profundamente assustadoras.

(Ou não!).

CRÔNICA DO DIA.

TEMPO

Célere. Sinto-me ainda com a idade que tinha quando deixei a casa de meus pais. Isso soa estranho porque, de certa forma, me aprisiona a um momento e a uma vida que já não existe. Aquela idade reside acesa, um farol erigido no alto de uma ilha - centro de meus anos -, embora eu seja um outro e tantos outros tenha me tornado no transcurso.

Súbito. Como se houvesse envelhecido ao contrário; descobrisse que em remota época teria sido mais maduro que hoje (e severamente mais pesado). Rio escalando escarpas, chuvas ascendendo dos campos, plantas florescendo sob espessa camada de cascalho. O mundo girando, retornando, reflexo dele mesmo.

Inesperado. Veio o sentimento de antes e de depois. Veio dominar o agora. Mimetizá-lo para que eternamente difusas sejam as angústias vividas e as esperanças por serem.

É mesmo um capricho. Aspecto, visagem de estrelas extintas que permanecem enviando luz através do universo. O tempo é uma ilusão. Tanto para frente quanto para trás.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

DA SÉRIE: POESIAS INACABASAS.

ESMERALDAS DE VIDRO

Penetro os meus olhos por entre a grinalda
Na busca incessante da melhor imagem,
Mas todas desvelam a mesma miragem
Verde em minhas vistas feito uma esmeralda.

É a verde mata que se a mim desfralda
Misteriosa e bela, porém sem passagem,
Natureza espessa, tal e qual, selvagem
É também a minha, meu signo e balda.

Desde o raso vale, as fossas, a falda,
Cobre a escuridão imensa bestiagem,
Os anjos de rapina que em conjunto agem
São de solidão, gosma que me escalda.

Verde-negras asas em minhas espaldas
Reluzem nas noites feito uma colagem.
São asas, por certo, ou cópia, ou miragem?
Verde-negro-inúteis, falsas esmeraldas.



(Em Recife-PE, 02 de Julho de 2009. São 18h49. O dia foi difícil e esquisito e a poesia não poderia ser diferente. Quando nasceu, em tempo ignorado, os primeiros versos prenunciavam alguma claridade, mas não hoje. A demora do parto deu nisso. Nigérrima).

CRÔNICA DO DIA


DA VARANDA EU VEJO O MAR. O MUNDO NÃO!

Tenho um belo mar sob meus pés. Que vai e se demora em voltar. Parece que as ondas não são as mesas, pois sempre cantam diferente quando tocam as pedras do quebra-mar. Eu as fico ouvindo da varanda, tentando entendê-las.

Parece que fazem o mesmo acerca de mim, porque cada uma delas, ao que me parece, ainda que muito atrasada no dia, volta horas depois e se arrebenta na amurada, querendo saltar para o meu décimo quinto andar.

Olha que as coisas são mesmo muito confusas. Eu pularia sobre elas, se me pedissem, muito embora existam os quinze pavimentos, além de uma larga avenida que nos separa. É assim, o silêncio entre as pessoas põe inexistência (veja que nesse caso é entre uma pessoa e as ondas, mas vale para pessoas também).

O mar é grande, infinito para olhos e vazio para todo o resto. Vão pedaços de mundo nas costas dos enormes cargueiros que desfilam no horizonte. São só pedaços.

O mundo é grande e não cabe nos meus olhos, mas minha alma tem espaço, como se jamais tivesse sido ocupada. Um apartamento vazio, uma casa enorme, uma varanda sem fim debruçada para além dos oceanos, da calma e da imaginação. Estou inútil para esse tempo de ondas que não se acaba.

..."Mais vasto é o meu coração".

Não é uma rima, mas é uma boa solução.
(Que me perdoe Drummond).

O EXERCÍCIO DE REVISÃO.


A MESMA EMOÇÃO, MAS UMA OUTRA.

Quando terminei de escrever o primeiro romance, em outubro de 2008, tencionava revisá-lo já no início de 2009. Ocorre que nos primeiros meses do novo ano ainda não me achava preparado para fazê-lo (ou isso ou a preguiça, ou mesmo o desejo de começar um outro livro, sei lá... Melhor, acho que sei, porque o segundo livro saiu antes da revisão do primeiro).

Contudo a hora chegou. Peguei-o recentemente para a segunda leitura, quero dizer, a primeira leitura, porque a outra foi a escrita e essa não conta.

Conhecer a história é uma espécie de castigo, porque não existem mais surpresas. Por outro lado permite que nos concentremos nos detalhes, nas palavras, na construção. Foi isso o que me emocionou. Não pretendo aqui entrar no mérito sobre a qualidade literária do romance, sobre isso o tempo se incumbirá. Detenho-me apenas em descrever - muito superficialmente - a emoção pelas novas descobertas, pelos sentimentos escondidos nas linhas (não nas entrelinhas), com os quais eu, até então, não havia tido contato.

Terminei ainda há pouco e essa emoção permanece, porque eu ainda consigo enxergar os rostos que desenhei para cada personagem e os sentimentos que os conduziram até o final da história. Quero dividir isso com outras pessoas, mas... Não sei, acho que devo isso ao tempo. Ele dirá.

Por hora ensaio a correção digital e a inserção (ou mutilições) originadas dos apontamentos que fiz. E fim.

(É como a vida, que se vai escrevendo sozinha e tentamos corrigir aqui e ali. É só. A vida e os livros são a mesma coisa, muito embora sobre os livros se possa ter algum controle).

quarta-feira, 1 de julho de 2009

DA SÉRIE: POESIAS INACABADAS

UM ESCARAVELHO

Assustei-me
Era minha, era minha a antiga figura no espelho,
O hirto - escasso esqueleto - o velho rosto carcomido,
Também meu era o semblante, demasiado abatido.
Reflexos de minha alma nas asas do escaravelho.

Hesitei
Mãos de porcelana opaca, olhos acesos, vermelhos.
Onde se ocultara a sombra que me houvera consumido?
Sobre os altares de cera, sonhos calados, dissolvidos
Se misturavam ao brilho das asas do escaravelho.

Titubeei
O nada herdado ascendia. Herança de bom conselho.
Somente a amarga presença e o tempo desfalecido.
Passado e futuro mortos. Só o presente abstraído
No movimento incontível das asas do escaravelho.

Recuei
Qual maquinária infernal, qual um infame aparelho.
Giravam em torno de mim - por meu calor atraídos -
Fantasmas do que não fui, espectros desconhecidos,
Feito anjos que girassem com asas de escaravelho.

Esperei
O remoto e o vindouro unidos num mesmo cravelho
Como se assim me trancassem, mantivessem guarnecido.
Mas eu estava à deriva, por vermes-horas, comido,
E os meus restos eram cascas das asas do escaravelho.

Disparei
Como fazem os com maus dias, bando de velhos coelhos,
Se devoram, se amontoam, desmontam o que foi tecido.
Correm porque o tempo chega – temível - grande inimigo,
Deixando somente ausências nas asas do escaravelho.

Entreguei-me
Ao rigor dos anos ágeis, tombei sobre meus joelhos,
Por mais que mais me negasse, fora ultrajado e traído.
Há de gastar-me a velhice, como a um roto vestido,
Apagando-me p'ra sempre das asas do escaravelho.


(Em Recife-PE, 1º. De Julho de 2009. São 13h09. Esse poema deveria ser um dodecassílado, mas não o foi. Continua inacabado porque deixou de ser aquilo para o que estava destinado. Assim como todos nós, todos os que estão destinados a algo e acabam por se transformarem e outro, melhores ou piores ou, no mínimo, diferentes).

Quando houver tempo e oportunidade e palavras que caibam, vou transformá-lo naquilo que deveria ter sido. Por hora serve. Serve para o Blog.


P.S. Depois da primeira postagem já fiz algum retoque. Vai saber no que se tornará...