"PORQUE NARCISO ACHA FEIO O QUE NÃO É ESPELHO" (Caetano Veloso).

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

POEMAS RECÉM-NASCIDOS


MARCHAI!

Levas de retirantes,
Hordas de famintos e miseráveis,
Rumas de cabisbaixos desesperançados,
Batalhões de inenarráveis vozes, murmúrios e silêncios:
Marchai!

Marchai, pois, marchai!

Ancorada está a nau dos degredados,
Tremulam em mastros distantes as bandeiras negras dos corsos
E estes afiam suas longas unhas, imundas, desgastando-as na proa.
Suam os remadores, seus dorsos deformados, impulsionando a galé;
Emparelham-se todas as embarcações e ouvem o chamado:
Marchai!

Marchai, pois, marchai!

Turba de ignorados,
Populacho, dignos representantes da escória,
Líderes da malta e seus asseclas,
Súcia dos desprovidos, dos sujos e desnudos,
Meretrizes, pederastas, reis e rainhas da noite e dos guetos.
Enfileira-se o clã dos madraços, de punhos cerrados:
Marchai!

Marchai, pois, marchai!

Coronéis desonrados em batalhas antigas,
Generais carcomidos de ferrugem e covardia,
Soldados de baixa patente, estima e bravura.
Nenhuma medalha a reluzir, e ainda as armas embainhadas.
Mancam seus cavalos e de velhos se curvam.
Pesam-lhes nas mãos as baionetas, retinem,
Quando, ao longe, rugem canhões apodrecidos:
Marchai!

Marchai, pois, marchai!

Porque este é um canto de esperança.
Disparadas foram, as palavras, e marcaram as paredes das casas,
Esburacam-nas com seu aço e sujaram-nas de pólvora.

Marchai, marchai mais!

Porque a voz que dormitava recobrou-se
Da borda do abismo.
Sonambolava, prestes a ceder,
Mas do fundo ouviu-lhes a marcha e acordou.

Marchai, ainda e ainda, marchai!

Porque não é a fome que aniquila, mas a resignação.
Tampouco o exílio o que oprime; mas a fuga.
Levantem suas cabeças e batam os pés
Para que trema a terra e se curve o céu,
E todo o silêncio seja estilhaçado na primeira hora.

Marchai, marchai, marchai!

Rumo ao porto – ser vela e vento e mar.
Contra ondas negras e monstros das profundezas, vão!
Tomar de assalto as caravelas dos conquistadores
E quebrar os remos das galés para que deslizem sem esforço.
Para que se acalmem as águas e se abra o firmamento.

Marchai, ainda que exaustos, marchai!

Com suas vestes de corte, manchadas e rotas.
Ao som dos doídos clarins e por entre olhares incrédulos.
Realeza inexpugnável, cuja dignidade se oculta sob a pele;
Soberanos das sobras, majestades do submundo.
Sois os herdeiros da escuridão, da noite e dos faróis.
E na cova de seus rastros eclodirão,
Feito serpentes indestrutíveis, os novos dias.

Marchai, sim! E sangrando, marchai!

Pela ausência de divisas em seus ombros
E pelo que lhes foi negado desde a aurora.
Para vingar os cavalos estirados no campo de batalha,
Recobrar a honra e a coragem.
Avancem! E sem demora, visto que o temo os come.
Avante, soldados desfardados,
Avante desafortunados, coroados de maus agouros.
Levantem e sigam, porque este é um canto de esperança.
Sacudam-na, façam tremer suas vestes verdes,
Pois ela só desperta depois que todos despertarem.

Marchai, marchai, e sempre e muito, marchai!

Porque sem marcha a vida se esgota
E toda sorte de fungos a faz apodrecer.
Marchai sobre a feiura dos campos desérticos;
Os que precisam ser semeados.
Pelo que não vingou e por tudo que ainda há de ser.
Pela angústia que nos irmana do mesmo lado do rio
Como se um único fôssemos todos nós.
Marchai por vós e marchai também por mim,
Poeta exilado, apátrida,
Cujo coração vermelho
Pulsa em verdíssimo manto,
Sob os pesados pés do universo.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

POEMAS RECÉM-NASCIDOS


A MEDUSA

Paz das coisas tolas e pequenas
Dos cerrados retorcidos e das casas velhas
Carcomidas por lembranças em pó.

Paz das almas fracas e servis,
Dos cordeiros dependurados
E das moscas festejando restos azuis.

Paz das senzalas interiores,
Dos jazigos presenteados ao nascimento.
Dos serenos rios correndo a um só lugar.

Paz dos varais tremulantes,
Dos tanques intermináveis de lençóis quarados,
Dos dedos crus das lavadeiras.

Paz dos hirtos, enfermos e contentes.
Dos átrios sem gente ou pressa.
Do mato crescendo por entre pedras.

Paz dos lagartos sob os troncos,
Dos homens sob cascas
E das almas por detrás de cortinas.

Paz sem serventia.
Paz que não se levanta nem reage.
Paz letárgica e mentirosa.

Em constante guerra se ergue
O meu coração.

Sujo de sangue.