"PORQUE NARCISO ACHA FEIO O QUE NÃO É ESPELHO" (Caetano Veloso).

domingo, 30 de janeiro de 2011

BALADA DO EMPAREDADO


[Imagem: Icarus - Hendrik Goltzius 
Vídeo:  Ironic - Alanis Morissette]

Com uma parede contra as costas – oprimindo
E outra se erguendo à frente do meu peito
Sinto o ar fresco rareando, se esvaindo
Numa medida crescente que não tem jeito.

Opostas ao coração as costelas – comprimindo
E o osso esterno oposto ao tórax estreito,
Na medida em que a parede se vai subindo
Sobe-me também um pavor que não tem jeito.

Grossas correntes presas aos pulsos – aspergindo
O suor dos braços nesses tijolos desfeitos,
Uns sobre os outros eles se vão reunindo
Como muralha fatal que não tem jeito.

As pernas fracassadas – a sanidade caindo
O corpo pesando com um congênito defeito,
Penso que ouço – grasna o carrasco sorrindo
Dessa minha condição que não tem jeito.

Vai-se a parede – à altura dos olhos – indo
Selar a alcova, seu pouco ar rarefeito
Parece-me aos olhos que estou dormindo
Numa escuridão eterna que não tem jeito.

Já emparedado – com o oxigênio findo,
Cai-me – pesada – cabeça pr’ao lado direito,
Espaço para que a loucura se vá construindo
Como parede de cova que não tem jeito.

E antes que a demência acabe nutrindo
De irônica vida o mortuário leito,
Forço toda a força dos ossos partindo
Forçando os tijolos que não têm jeito.

E se ainda agora há o sangue fluindo
É que a testa dura encontrou defeito
Na parede nova – a carne se abrindo
Encontrou a cura pr’ao que não tem jeito.

Eu – emparedado – sofro ou estou fingindo?
Cedo à condição que já não tem jeito.
Uma parede às costas se auto-destruindo
E outra se elevando dentro do meu peito.


[Dos: POEMAS DO ESTOQUE]

domingo, 23 de janeiro de 2011

TEIMOSIAS SECRETAS


(Imagem: The artist's children - David Davies
Vídeo: Cuitelinho - Renato Teixeira] 

(Ou: Partes do grande tratado universal acerca do que se pode ou não fazer num fim de tarde).

I.
Pelo silêncio eu chego a Deus.
Deus chega a mim pelo mistério.
Tá aí a nossa diferença primordial:
Sou mais objetivo e mais econômico.

Dezenas de vezes reconheço que falho,
Mas na maior parte do tempo eu teimo mesmo.
Quando há possibilidade de inventar uma desculpa
Eu a invento, mesmo que a verdade seja mais fácil.
A natureza das desculpas é nos colocar em constante perigo
Como se Deus nos deixasse por nossa conta
Naqueles minutos em que as elaboramos.

II.
Um velho tem mais sabedoria do que eu,
Uma criança tem mais inocência do que ambos,
Uma passarinho é menos dependente do que os três
E eu, sinceramente, não sei a quem devo me devotar.
(Por falta de coragem
Me devoto aos meus próprios interesses.
Sendo assim, erro para dentro).
O egoísmo não é a melhor saída,
Mas é uma saída bastante cômoda,
(Melhor que a do gambá
Ao fingir-se de morto).
De qualquer modo
Tanto o egoísmo quanto o gambá
Têm seus maus odores.

III.
Por uma janela se vê uma dama nua
Mas pelo buraco da fechadura se vê o que realmente importa.

IV.
Fiz um pacto com Deus
Ele me ensina sua linguagem e eu lhe ensino a minha.
Ele sairá ganhando
Jamais aprenderia nos livros da eternidade
Bestagens tão grandes quanto as que produzo.

V.
Tem um passarinho de papo amarelo fazendo ninho
Num fícus que tenho no quintal de casa.
Se ele me soubesse pedir
Eu o daria uma casinha de barro toda caiada,
Mas ele é orgulhoso demais
(Orgulhoso ou mudo, vai saber...).

VI.
Depois de velho dei pra ficar besta.
Acho que é o fruto do treino de uma vida inteira.

VII.
Vivo na cidade, mas tenho os dois pés
Sujos de esterco de vaca.
Um dia desses arrotei salsinha.
Não é sempre que isso acontece,
Portanto não vivo me arriscando
A arrotar na salada alheia.
Sei que isso é meio asqueroso
Mas se pudéssemos sentir o complexo cheiro das almas
Saberíamos que entre o esgoto
E o roseiral
Tudo o que cheira merece respeito.

VIII.
Nem sempre a tarde se esgueira
Nas frestas da persiana.
Quando isso acontece vejo carros listrados,
Cortados pelas tênues lâminas da janela,
Correndo em desabalada pressa
Pela rua de frente.
Se correrem mais é bem capaz que se desfaçam,
Retalhados...

IX.
Deus me ouviu falar dEle e veio espreitar.
Fico meio sem jeito com a visita,
Nunca sei o que o que pensa a meu respeito.
O que sei é que nunca reclamou
(Isso deve ser um bom sinal).

X.
Parte do meu desejo não passa de um suco de tangerina,
Outra parte ficaria bem feliz de ter assistido
Ao nascimento dos planetas.
Por isso mesmo me detenho por algumas horas,
Todas as noites, a espiar o céu
(Vai que hoje de noite tenha reprise).
Depois que uma ou duas estrelas nascem
Perco a paciência e me volto para o suco.
(Acho que é por isso que nunca vi galáxia alguma nascendo).

XI.
O ineditismo da criação é questionável.
Para que raios se criaria um negócio
Fadado a ser antigo desde seu nascimento?

XII.
O sol já está inteiro escorrendo, escorregando.
Se não o segurarem, escurece.
As árvores da rua já estão se encolhendo
Preparando-se para a noite.
Parece-me que a noite elas ficam menores –
Deve ser por medo do escuro –
Quanto menores, mais fácil de se esconderem.

XIII.
Uma verdade e uma teimosia para terminar:
Verdade é que minha alma tem cheiro de mangueiras
E que em meu coração cabe uma invernada de gado nelore.
Teimosia é continuar tentando ser moleque
No meio dos pastos.
É continuar sentado sobre o mourão do curral,
Distraído, me olhando sempre de longe,
Até que seja definitivamente moleque,
Até que Deus desista
De me envelhecer...


[Dos: POEMAS  DO ESTOQUE]

[Escrito originalmente para o livro "A Minha Idade de Cristo"]

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

POESIA POR QUE?


[Imagem: Oedipus and the sphinx - 
Jean-Auguste Dominique Ingres
Vídeo: L'aurora - Zizi Possi]

Poesia porque a chama da vida se esvazia,
Porque se ri a hiena enquanto ameaçam-lhe a cria,
A leoa que se acerca quando a olha se sacia;
Do cio de ambas as fêmeas a letra se denuncia.

Poesia, poesia, poesia... (Por que?).

Poesia porque a sobra na falta se abrevia,
Abre uma chaga em seu dorso e um verme nela se enfia,
Brilham num mesmo horizonte o condor e a harpia.
Do âmago dessa chaga a letra se pronuncia.

Poesia, poesia, poesia... (Por que?).

Poesia porque a sede nela se acaba e se inicia,
Porque nas garras da águia a serpente rodopia,
Num ninho das taturanas a borboleta crescia
E o que antes era fogo queima em letras, se recria.

Poesia, poesia, poesia... (Por que?).

Poesia porque a sorte se descobre ao fim do dia,
Porque no cheiro dos lobos um almíscar se irradia,
A ramagem da planície lhes cobre a coluna esguia
E p’ras letras que eles uivam, longe uma cigarra chia.

Poesia, poesia, poesia... (Por que?).

Poesia porque a vida ao peso da morte esfria.
Entre predador e caça há a garra e a fatia,
No cheiro ocre de sêmen a fêmea fera procria
E a letra que dela nasce é temporã e tardia.

Poesia, poesia, poesia... (Por que?)

Poesia porque tudo do contrário ruiria.
Porque no bote da píton há veneno e iguaria,
Em seu abraço apertado uma corça findaria
E a letra desse namoro seria finda e fria...

Poesia, poesia, poesia... (Por que?)

Poesia porque ontem a metáfora exigia;
Porque o véu negro da noite a minha alma cobria,
Eu era a fera, o lobo, um monstro em mim residia.
Eu uivava, eu urrava, eu suava, eu renascia...

Poesia, poesia, poesia...

[Dos: POEMAS PERDIDOS NO TEMPO]