"PORQUE NARCISO ACHA FEIO O QUE NÃO É ESPELHO" (Caetano Veloso).

sábado, 31 de outubro de 2009

POEMAS TARDIOS


POEMA EM PRETO E BRANCO

Cervo da noite.
Dono de um coração cuja musculatura
A manhã tratou de refrigerar
Com o primeiro orvalho.
Ele assistia.

Esvaía-se o dia em sangue dourado
Jorrado desde a ferida aguda no âmago alto do céu.
Vazava a luz áurea sangrando o universo
(O Apolo amputado queimava sobre seu coche)
- Ardia o firmamento
- Queimavam-se as nuvens, o cigarro e as veias.
Nada de pé e tudo ereto.
Até os pêlos, até os ossos, até a lâmina.

O guerreiro, do qual a noite era mãe,
Assistia pacientemente seu inimigo reinar.
Espada em punho ele o via debater-se no alto
E esperava.
Esperava a hora de cravar-lhe o gume certeiro
E vê-lo, por fim,
Atirar-se, ferido, atrás do horizonte
Para morrer.

Reinaria novamente ele,
O guerreiro.
Escuro e quieto sob seu manto negro.
Irmão da lua, das aves que caçam nas sombras,
Reconstruiria seu reino de mistérios sobre os rochedos e o mar.
E nada além, acima ou acerca de seus muros
Brilharia
Até o novo dia
Quando, destronado,
Assistiria o universo se incendiar.

(Queimaria secretamente também, por doze horas,
Guardando a negra fumaça de sua carne
Para tudo enegrecer
Sucessivamente).

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

POEMAS RECÉM-NASCIDOS


BELIGERÂNCIA

Ah, que hoje é o dia. Ei-lo.
Vieram rugir os gigantes à minha porta
E corvos pousaram na amurada.
Todas as sombras se curvaram
Enquanto a luz se escondia debaixo das pedras...
Eis esses meus olhos contempladores do escuro,
E a minha alma em festa, beligerante e delicada,
Não temem a nada, a absolutamente nada.

Ah, que é esta a hora. E seja.
Cercaram-me os umbrais criaturas de pedra
E gárgulas negras voejam ao largo da enseada.
Os sons arderam no gume das palavras
E o vento da manhã se ocultou por entre as folhas...
Eis que aos sinais, os ignoro e ainda respiro
- O ar escasso, um bálsamo amoníaco – a lufada.
E me amedrontam nada, absolutamente nada.

Ah, que esse é o tempo. Heiah!
Demônios se entrincheiraram entre os antúrios
E pelas raízes ceifaram a erva que fora plantada.
Secou o orvalho junto do primeiro raio
E o frescor se foi, amoitar-se entre os répteis...
Eis que a minha carne velha se enrijece como nunca
E o meu coração se amansa - arma engatilhada -
E nada o aflige, nada. Absolutamente nada.

Ah, que o momento se fez. E já.
Sílfides rubras forçam janelas, se esgueiram,
E os vermes rastejam infectando a entrada.
Desbotam-se as cores além da antiga vidraça
E todos os reflexos singularmente envelhecem...
Eis o meu espírito de ferro em meio ao pó dos anos
E a minha alegria teimosa - intacta e preservada,
Não se acovardam ou curvam. A absolutamente nada.


terça-feira, 27 de outubro de 2009

POEMAS TARDIOS


DESCIVILIZAÇÃO

Faça o sinal da cruz antes de entrar.
Se benza e unte, meu irmão!
Porque aqui – morada de lobos -
Aqui não!

Traga fora da bainha a sua faca.
A figa, o patuá, a vela queimada.
Porque aqui - rinha de galos –
Aqui, nada!

Afie as unhas no batente áspero.
Dentes precisos, unhas aduncas,
Porque aqui - cova de feras -
Aqui, nunca!

Feche o corpo, recobre a calma.
Resguarde sua alma, meu irmão!
Porque aqui - arena de homens -
Aqui não!

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

POEMAS RECÉM-NASCIDOS


A MULHER NO ESPELHO

A mulher no espelho
Depila
Aquele pêlo que pelo espelho
A admira.

A mulher no espelho
Prepara
A armadilha que em pleno espelho
Se arma.

A mulher no espelho
Suspira
Olhando aquela que do espelho
Transpira.

A mulher no espelho
Modela
O penteado, e pelo espelho
O revela.

A mulher no espelho,
Breve,
Deixa seus restos no espelho.
Está leve.

domingo, 25 de outubro de 2009

POEMAS TARDIOS


ARTEMIS

Ela sibila, esguia,
Estridente ente na forquilha
Exala perfumes inexatos
Capazes de arrebatar
Qualquer olfato.

Sulca com os dedos
A morna mata
Plana, rasteira,
Úmida, densa, vegetal.
Carne molhada
Como se houvesse ali
Sido abatida
Uma presa
E ainda arfasse
E ainda respirasse
Com dificuldade.

A lança ponta de unha,
E a caça se atira contra ela
Devorando-a,
Uma, duas lanças
Precipitam a inquieta sensação
Que lhe percorre
Com terrível rapidez
Todas as extremidades,
Todas as cavidades
Todos os poros.
A fera saliva
A presa arfa
A lança morna
É o troféu da caça
Delicadamente fincado
Nela.

Ela grunhe
Ela range os dentes serrados.
Gutural, contraindo-se,
Uma píton em torno da presa,
Língua no céu da boca...
Relaxa, então, exausta.
A outra mão
Que lhe vai alisando,
Acalma os sentidos
Deflorados.
À flor dos pêlos.
A perenidade se lhe vai tomando,
Deitando-se sobre ela
Devagar
E ela dorme
Ainda com os dedos suados.
Saciados.
Saciada.

sábado, 24 de outubro de 2009

POEMANS ANTIGOS (MAS AINDA VIVOS)


OS OLHOS DO MEU AMOR

Os olhos do meu amor
São de um azul celestial
De um céu de outubro
Com sol a pino.
Meio dia – dia quente
E seus olhos reluzindo...
Os olhos do meu amor
São mãos inescrupulosas
Que me tiram as roupas
E exploram minhas mucosas,
Os olhos do meu amor
Me derretem
Me renovam.

Quanta variedade de azul existe na palheta?
Nenhuma, entre todas elas, tem a tonalidade secreta
Que seus olhos únicos escondem
Mesmo completamente despidos, leves e revelados.
Os olhos do meu amor são o espelho onde mergulho
Onde meu orgulho é encontrado,
O lago onde adentro até os joelhos
Onde sou profundamente sugado.
Os olhos do meu amor são meu amparo
O anteparo para o que me é sagrado
Seu coração no meu peito
O meu em seu peito guardado.
Os olhos do meu amor
Me devoram
E eu imploro para ser devorado.

Os olhos do meu amor
Cobalto–turquesa–anil
Com seu brilho azul intenso
Com seu apelo infantil
Devora-me a alma em chamas
Me atraca pelo quadril
Os olhos do meu amor
São raios num céu de abril
Coberto de nuvens rubras
Da tarde que não caiu.
Os olhos do meu amor
São minha cama
Meu covil
Onde remoço e me esqueço
Por horas e horas a fio.

Os olhos do meu amor
Quando entram em casa
Acendem todos os cômodos.
Eles me tingem de azul
E me fazem mais bonito.
Sou um céu
Quando eles chegam...



Para o meu amor, cujos olhos são os mais lindos que já vi.

(Trata-se de um poema escrito em 2007, mas que veio a calhar para esta noite, enquanto meu amor volta para casa, matar meus dois dias de saudade).

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

CONTOS AMANHECIDOS


O RUBI

O catador de papelão permanecia sentado ao lado do corpo, contemplando o brilho vermelho da pedra que tinha entre os dedos. Abandonada ao lado a carroça de homem-de-carga, ainda vazia; aglomeravam-se os passantes, eufóricos, mas silenciosos, para contemplar a cena. Eram seis da manhã.

As quatro e meia ele havia juntado os cobertores e deixado o mocó. Antes, como fazia todos os dias, examinara o bolso em busca do rubi. Estava lá, a pedra irregular, rubra feito a vida. Cedo ou tarde a venderia. (Bom dinheiro, bom dinheiro, sem dúvida). Iria comer todos os dias, todos um dias um sanduíche com duzentos gramas de mortadela e um copo de achocolatado, um não, dois. E teria casa. Era certo, bastava vender a pedra.

Dez anos que a levava consigo junto do peito. Seu tesouro. Encontrou-a entre caixas de papelão e vestidos. (Os vestidos? Os guardou enquanto esperava que a mulher voltasse. Mas como o encontraria? Ela, que se fora numa manhã branca, comprar o pão do dia enquanto lhe punham o barraco a baixo. Não voltou. Sem ela e sem o pão ele se aquietou, sentado junto aos entulhos, até que fome lhe rasgou as carnes e a falta lhe ardeu nos olhos).

Os deu para uma dona. Seis ou sete anos depois. Uma dona que lhe abriu as pernas e fez a saudade dela aumentar. Não tinha mais os vestidos, mas o rubi... Com uma casa ela voltaria. Endereço fixo, sanduíche de mortadela, macarrão com frango no domingo.

(Guardou-o para ela até aquele dia)... Andou os quilômetros de sempre e, sempre, como fazia sempre, sentou-se para descansar antes de percorrer as ruas habituais. Coçou o rubi no bolso. Tirou-o devagar e enamorou-se dele, porque era vermelho como os lábios dela, e tão vermelho quanto a saia e tão vermelho ainda, quanto o fogo dela.

Entretido que estava mal sentiu o outro que se achegava. Só se deu conta quanto lhe arrancou a pedra da mão e partiu para o meio da praça feito cão ladino. Pôs-se atrás. Corria bem. Cinquenta anos nas costas, doze de carroça, mas com pernas fortes. Vinte passadas largas e se atirou sobre o sujeito, derrubando-o.

Deu-lhe de punho fechado. Na nuca, nas costas. E quando se virou, deu-lhe no rosto e nos dentes, mas o malandro não soltava. Resistia, esperneava. Só depois de lhe prender os braços sob os joelhos foi que teve certo domínio. Vendo-o ali, de mão cerrada, lutando para se desvencilhar, não lhe restou maneira. Trançou-lhe as mãos em volta do pescoço e apertou. Apertou. Apertou. Lhe fugiram os olhos, foram indo. E os olhos eram ela, ela fugindo, escapando. As forças se abatendo lentamente, escoavam; lembranças. Até que o sujeito parou de respirar e ele pôde ter de volta a sua pedra. Arrancou-a de entre os dedos ainda quentes.

Quando chegou a polícia ele estava inerte, absorvido pelo brilho da pedra.

Tomaram-na de sua mão sob protestos e gritos. Tempo em que um o algemava e o outro a examinava detidamente.

“Vamos embora”. E o meteram na viatura. Antes, porém, o outro policial se livrou da pedra que trazia na mão. Jogou-a pela janela.

“Meu rubi”. Chegou a dizer, e os policiais riram; riram porque cacos crepitaram na calçada assim que vidro grosso a tocou.

Já se distanciava o carro; ele permaneceu contemplando. Estrelas frágeis de fogo e sol sendo varridas junto das folhas mortas pela noite...

Não a teria de volta, nunca mais...

terça-feira, 20 de outubro de 2009

POEMAS RECÉM-NASCIDOS


A CAÇA

Ela não é óbvia como o que se espera dela.
Cadela? Pode até ser... Somente o cio a revela.
Expõe as tetas por entre gretas de janela.
Como detê-la, se as estrelas brilham nela?

Ele a observa. A queria serva. (Justo ela).
A cadela. A que lhe acerta, lhe aperta firme a goela.
Lhe beijaria os seios pelos entremeios da tela
De sua finíssima blusa. Mas, não! Recusa-se, ela.

Ela não se curva feito o fazem para ela.
Magrela? Gostosinha... Da espinha até as costelas.
Coxas torneadas, longa, delgada, uma gazela;
Como impedi-la, desmenti-la, afastar-se dela?

Ele a teme, porque uma draga vive nela,
Aquela. A cova funda, e mais, a bunda, a arandela
Capaz de sugá-lo, comê-lo, de lhe derreter a vela.
Deve fugir, recusar, contudo se prende a ela.

Ela bem usa; sabe do poder que emana dela.
É bela? Não se importa, nem lhe conforta a tal sela.
É livre, como se espera de uma mulher como ela.

Ele se perde, estremece, endurece pensando nela.
É bela! Pronta a domesticá-lo, sepultá-lo em sua cela,
E livre... O que mais teme em uma mulher como ela.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

CONTOS NOTURNOS.


ANTES QUE A NOITE ACABE

- “Antes que a noite acabe hás de me esquecer!”

Disse-lhe, ainda girando, sacudindo a pachimina que lhe coroava os ombros enquanto dançava.

- “O encanto é como a neve que lenta se deposita sobre as folhas e os bosques. As árvores se vão vestindo de noivas com longos vestidos brancos; emparelham-se ao largo, feito alvos anjos, em profundos silêncio e beleza. Depois se vai, com a primavera. Antes da flor primeira. tudo se derrete, escorre, é absorvido pelo chão”.

E se equilibrava no ar, pondo ondas no finíssimo tecido, sua última pele.

- “Virão outras rosas; outros pardais chilrearão sob a eira de teu quarto e te despertarão para manhãs desconhecidas. E eu terei sido ave de um outro tempo, cujo canto definha no fundo de uma lembrança; beirando a ser irreconhecível. Tentarás assoviar o meu nome, mas os teus lábios se renderão ao esquecimento, à estranheza do intento, ao desconforto de entoar canção que nunca existiu”.

Quase não a ouvia. Rendia-se ao deleite de seus movimentos e ela prosseguia, rodopiando.

- “Veja, que como poeira voarão os teus dias; sempre para frente, sempre adiante. Eu permanecerei lago, água de um só lugar. E menos que água, seixo; e menos que seixo, musgo; e menos que musgo, saudade inominada. Saudade de... Não saberás... Do lugar que nunca viste? Do gosto jamais provado? Do desejo queimado até as cinzas, mas irreconciliável?

Tentou interrompê-la, contudo não conseguiu. Ela tocou-lhe os lábios com os dedos e eles traziam o mel dos anos, da infância.

- “Não diga, não, não diga! É noite, e as palavras se perdem dentro dela. As palavras e tudo o mais para além. As minhas mãos depois das tuas, e os meus seios antes dos teus lábios, e o teu desejo junto do meu, entrecortados, auscultando o galope precioso de instantes por findarem. Não diga, não agora! Para que o silêncio te guarde e escolte; nele encerre lembranças e madrugada, porque antes que a noite acabe hás de me esquecer”.

Ela, então, livrou-se da pachimina rubra e finalmente cessou de dançar. Findara a música. (As horas não).

O tempo se incumbiu de semear cinzas sobre a noite e apagá-la.

Anos depois ouviu a mesma música. Qual ave abatida em pleno voo, acudiu-se dela, perseguiu-a de ouvidos até alcançá-la. (A bailarina rodopiava).

Detrás de vitrina a bailarina; e tão opaca quanto a vitrina, a sensação de limiar. (A peça que lhe faltava? Uma pachimina?) Fagulhas, lembranças abrasadoras, imagens por acender. Lembrar-se de que, afinal?

Da caixinha de música ela, pequenina. Girando, girando em frente ao espelho retangular. Uma bailarina como as outras, que nunca existiu. Não havia o que lembrar.

(Talvez, pela generosidade do acaso, tenha de fato existido; sido esquecida, depois... Antes de a noite acabar).

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

POEMAS TARDIOS.


(Neuzza escreveu em seu Spirituals do Orvalho algo que me chamou tanto a atenção que tentei, modestamente, traduzir).

TRADUÇÃO DA MELANCOLIA

Melancolia é quando a alma foge para dentro dos ossos.
A pele se vira ao avesso
E a base do espírito fermenta sensações árticas de fogo.
É quando os pêlos crescem para dentro
E sentimentos de aço ganham pontas.
Melancolia é um exército,
Campo onde toda a vontade se junta para guerrear,
Para hastear bandeira negra
E espalhar na superfície das horas a inquietação.

Melancolia é corda de cujo nó não se desfaz
Antes de estrangular a serenidade.
Aríete pétreo, ornado de pregos e brasas,
Tomando de assalto a quietude, enquanto faísca,
Enquanto espalha fagulhas sobre tapetes e vísceras.
Melancolia é quando as veias se voltam para fora
E escrevem na superfície da calma palavras indizíveis.
É quando o coração não aguenta é quer sair,
Mas não pode, porque as costelas o estão atravessando.

Melancolia é ventre vazio, infecundo,
Gestação eterna que a luz jamais verá.
É seio de onde o leite coagula antes de ser
Para que a angústia dele não se farte,
Não lhe morda os bicos depois de tanto beber.
Melancolia é o que a garganta arranha sem engolir
E a língua estranha enquanto saboreia.
É o trono em que a razão se senta e assiste
A alma fugir para os ossos,
A glote se comprimir,
Os olhos se desertificarem
E toda a beleza se esconder
Feito jamais houvesse existido.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

domingo, 4 de outubro de 2009

CONTOS NOTURNOS


A NOTÍCIA

- “O gato subiu no telhado”. Disse-lhe gravemente.

- “Não diga mais nada”. Interrompeu e prosseguiu. “Aconteceu, não foi?”

Olharam-se, consternados.

O silêncio disse o resto.

sábado, 3 de outubro de 2009

CONTOS NOTURNOS


ABALA BI!

Alcione era uma estrela. Ninguém cantava como ela, ninguém dançava como ela. Seus shows esgotavam na semana de lançamento.

Cobiçada por homens e mulheres, o vozeirão bethânico acalantava os desejos mais ardentes de uma platéia fidelíssima. Uma Obama blonde, uma Beyoncé dos trópicos, uma Grace Jones de cabelos loiros e anelados que desciam ao meio das costas, além de seus um metro e oitenta e tantos (fora o salto, com o qual praticamente nascera).

Os mais ousados perguntavam, quando a coragem lhes era suficiente, se os cabelos eram seus. “Claro”, respondia (se o bom humor estivesse ligado). “De um jeito ou de outro, são meus, sem dúvida”, e ria mostrando um colar das mais alvas pérolas por detrás dos lábios.

Altiva economizava o que podia para assistir-lhe vez ou outra. Aparecia lá pelas tantas e gritava, nos intervalos: “maravilhosa, poderosa” (coisas de fã). Nutria por ela alguma idolatria, um sentimento místico e uma vontade de se achegar.

E Alcione se deixou. Permitiu a aproximação daquela figura franzina, cuja peruca, visivelmente antiga, carecia de substituição. (Uma estrela generosa, sem dúvida). Não era dada àquele tipo de amizades, mas Altiva Emerenciana Di Vison Di Pollainas Di Buarque Di Camargo Di Mônaco Ballenciaga Vuiton sabia como agradar.

Chás de romã e gengibre, vestidos impecavelmente passados, e tudo sem que Alcione dissesse uma única palavra. Seis meses e já eram amigas de infância.

Contudo as línguas não tardaram a envenenar Alcione. Ela, uma mulher deslumbrante, uma estrela em ascensão, não deveria estar metida com um “veado de quinta”, e Alcione, temendo pela carreira, começou a se fechar para os favores, para as gentilezas de Altiva, até que seu camarim se fechou por completo.

Ressentida, Altiva deixou de frenquentar os shows. Já não se ouvia os gritos de “maravilhosa, nítida, reciclável” na platéia, de forma que os espetáculos voltaram a ser técnicos, justos e burocráticos.

No entanto, a legião de admiradores se enfileirava. Os homens a queriam e as mulheres a invejavam, mas Alcione sentia falta da presença devotada de Altiva. Justo ela, aquela criaturinha pequena que lhe havia confidenciado o maior de todos os seus segredos, seu nome de batismo (e isso sem lhe pedir absolutamente nada em troca), o “veado de quinta” que fazia o melhor de todos os chás de gengibre...

Estava prestes a chamá-la de volta e... Danem-se! Queria uma amiga com quem pudesse se abrir, confessar intimidades femininas... Falar de sua maldita TPM... Tinha saudades de Altiva.

O encerramento de temporada era sempre aquele inferno. Boate lotada, gente de todo tipo. Começou o número sem muito ânimo até pressentir a presença reconfortante da amiga. De fato ela estava lá, escondidinha num canto. No terceiro ou quarto número a viu se achegar para perto do palco e sorriu para ela ao final de um agudo. (Os olhinhos de Altiva escorreram rímel sobre o a maquiagem pesada).

Entusiasmou-se e passou a cantar para a outra. Só para ela. Soltar a voz, tirar da alma, agradecê-la como melhor sabia, cantando.

Enlouqueceu toda a platéia. Empurra-empurra, esbarrões, a primeira garrafa voando e Alcione de olhos fechados, sentindo o poder da música.

Ainda envolvida pela emoção das notas finais ouviu a voz de Altiva, alucinada, gritando como antes: “Abala bi, abala!”. “Tô abalando, amiga, to abalando”, pensou, antes de ouvir o estampido e ir ao chão.

Acordou no hospital doze horas depois. Felizmente o tiro fora de raspão. Livre da morte Alcione assistiu à morte do mito. O tiro não lhe tirara a vida, mas o estrelato. Passara dois centímetros acima da orelha direita e levara consigo a peruca loira.

Olhou para o lado, o quarto frio, a parafernália, a agulha na veia e o soro escorrendo... A máxima humilhação era a camisola verde e a nudez. Estava tudo acabado. Todos já sabiam que Alcione, a estrela, era Alcione o estrela.

Acerca da cama estava Altiva, segurando a peruca loira feito o fizesse a uma divindade. Quando a viu despertar seus olhos se encheram de lágrimas e ela disse: “Eu disse, não disse? Eu avisei: a bala, bi! A bala!”

E Alcione, remoendo um humor do cão limitou-se a responder: “Cala a boca, Osvaldo!”.

CONTOS NOTURNOS


AURORA

Aurora, esse era seu nome. Não bastasse ser o que era e ainda aquilo, carregar um nome eternamente amanhecendo. Justo ela, lunar, atrelada ancestralmente aos mistérios comuns à noite e às mulheres, padecia sob o signo, sob o destino inaceitável de amanhecer, de luzir, de fazer com que a existência brilhasse.

Caixa de supermercado. Dando números à fome, aos desejos e precisões alheios, ensacando-os sucessivamente na medida em que deixava de ser ela para que o dia a devorava, clareando demais.

Dois pacotes de arroz, três garrafas de vinagre, um quilo de sal, o troco da senhora apressada (a senhora teria cinquenta centavos? Nunca tinham). E assim. Encolhida no guichê, cabelos presos, menor do que realmente era.

Riam-se dela. Pelo nome, pela aparência longa e sem jeito dentro do uniforme. As colegas de check-out cochichavam nos vestiários e os clientes não resistiam a uma inspeção detida em seu crachá. Olhavam para o lado e apertavam os cantos da boca, tentando prender a surpresa, contudo ela sabia (deveras habituada), mesmo porque mal a olhavam na hora de pagar as compras e, tantas vezes, eles mesmos se apressavam em colocar os objetos nas sacolas para saírem esquivos e descontar a gargalhada antes mesmo de cruzarem a porta.

Aurora nada dizia. Apenas sentia noites conturbadas sacudirem-lhe a alma, e aqueles risos eram tormentas marinhas, adernando-lhe os barcos da estima e da beleza. Como se a cada cochicho, a cada gargalhada contida também lhe embaçassem o espelho e, por isso, ela se tornasse, além de andrógina, feia, manchada e digna de pena.

Ao fim do turno voltava a ser; o ocaso, o poente. Vencia à pé os sete quilômetros que a separavam de casa. (Necessidade). Necessidade de que a noite se assentasse sobre a pele de seu rosto, sobre seus braços, que falasse com ela sem se rir. (Necessidade de guardar uns trocados para os cabelos, para fazê-los, algum dia, de se admirar).

Tão logo amanhecia Aurora murchava. Esperavam-na os olhares, os não ditos, os gestos contidos. E mesmo os que não a tinham como destino, chama-os para si, porque no fundo, lá no fundo, era mais fácil suportar a certeza do que intentar contra dúvida. Resignada, um produto após o outro, um cliente após o outro, enfrentava-os como o fazia à luz. Até que...

Até que o novo gerente fez o que ninguém tivera coragem. Riu-se. Riu-se de verdade. Tentou se desculpar, bom que se diga, se retratar sem muito esforço. “É que...” Iniciou alguma explicação. “Eu sei, o nome é engraçado para mim, não é?” E foi embora, contrariada por ser tão solar, tão amanhecida, tão humilhantemente luzidia, sendo noturna como era.

Depois de caminhar as horas que lhe separavam do anoitecer e de ter coroado o rosto e a vergonha com o fel ácido das lágrimas, decidiu-se secretamente e fez.

Tarde da noite voltou ao supermercado. Outra. Núbia. Soltos por primeira vez, os cabelos coroavam-lhe a vontade irresignável. Volumosos e desconcertantes como não poderiam ser. E ao cruzar a porta fez cair o vestido. Lábios rubros e olhos firmes, seios miúdos e belos, curvas irreveladas. Caminhou até a sala do gerente. As luzes brancas lembravam uma lua artificial quando estendidas em véu leitoso sobre a pele desprotegida.

Foi devagar. Nua. Atravessou a porta para lhe dizer que não voltaria mais. Ele não respondeu. Admirou-a apenas. Silenciosamente e sem conseguir sorrir. As colegas do turno da noite também não riram nem cochicharam ao se depararem com o azeviche inteiro de sua tez e com a beleza secretamente descomposta.

Dormiu em paz.

A manhã seguinte foi negra, coberta de nuvens crespas, assim como negra, nigérrima, era sua pele e crespos os seus cabelos. Não veio o dia, o sol não despertou, não raiou a aurora, porque, naquele dia, Aurora desistiu de brilhar.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

CONTOS NOTURNOS


AMA DE LEITE

No início teriam sido bolinhos de coco. E ela os fazia tão bem, tão bem os bolinava que eles suavam entre as palmas de suas mãos até ficarem redondos, lisos e sensuais. (E ele os comia com mais paixão que a ela mesma).

Mas naquele dia algo não dera certo (ou dera certo demais). Foi no dia seguinte, na manhã em que seu homem fixo deixou sobre o criado-mudo dois tostões além (decerto para comprar o adeus). Saíra com passos mansos, juntando roupas (provas do amor urgente, semanal e clandestino), enquanto ela fingia dormir.

De manhã cedo o sol ardera descomunal pela janela, manchando de dourado suas órbitas e mesmo as olheiras negras das noites varadas. Estava ainda cansada, exausta de satisfazê-lo, de satisfazer a todos quantos pudessem comprá-la. Foi então que leu o que ele lhe deixara embaixo das cédulas. Se as palavras fossem capazes de refletir, refletiriam lodo ao invés da luz cegante.

Calma e ainda suja, e ainda lambuzada, e ainda faminta, foi ter com seus ingredientes enquanto remoía as frases lidas. Juntou-os no fundo da bacia e os foi mexendo delicadamente, depois com força, depois com as tripas reviradas, depois com os restos de si mesma, até deixá-los uniformemente pastosos.

Nalgum momento o branco se foi corando, tornando-se teáceo, pétala, por último rosado. Intrigou-se com o tom dos outrora branquíssimos bolinhos e não se deu por vencida, fincou dedos entre as pernas, por dentro da calcinha para investigar-se, ver se sobras dele vazavam junto das suas, (a mãe lhe houvera dito, isso muito antigamente, que não se devia cozer durante as regras, especialmente comidas brancas, porque essas se tingiam facialmente), mas não. Os dedos nada revelaram. Voltou, pois, a mexer, a sovar, a dar pancadas na massa rosa até obter-lhe a desejada consistência.

Somente enquanto os modelava é que sentiu. Da ponta do queixo precipitou-se-lhe sobre a mão uma gota vermelha. E ela percebeu com o pulso, deslizando-o pelo rosto. Antes os olhos vazavam. Naquele momento o rosto inteiro, o espírito, cada célula. Vazava, porque a cabeça estava partida, o coração pulsava últimos segundos nas pontas dos dedos e a alma sangrava pelo nariz, sujando a massa antes de esta ir ao forno.

Não se abateu. Borrou-se escorada na pia, maquiagem para a hora, largada sobre os azulejos frios da manhã, assistindo estática os bolinhos assarem.

Comeu-os, mais tarde, na tentativa inútil de que a alma voltasse ao seu lugar, mas no compartimento secreto onde antes ela houvera habitado não existia lugar para destroços. O coco e o açúcar se instalaram por lá, corrompendo-lhe todas as glândulas, dando vida a canaviais e a coqueirais sem fim.

Desde aquele dia seus amantes de aluguel passaram a amá-la mais e mais. Como mulher, como dona, como posse e latifúndio, porque ela lhes dava carnes tenras e leite de coco açucarado, direto dos seios e da alma (mas não amor, amor nunca mais).

CONTOS NOTURNOS


TRIUNFANTE!

(Pois bem... Tem de ser breve. Como algum angustiado que respira só até o peito. O ar não desce, portanto é urgente. A urgência é boa. Como uma vingança para dentro. Mesmo que desça somente até o peito)...

Descendo o elevador, somente dezoito andares. Como se a vida descesse até o fundo, muito mais rápida que o próprio peso de um elevador caindo; elevador que não tivesse cabo, não tivesse contrapeso, tivesse gente, somente gente dentro.

Antes de adentrá-lo ela olhou para dentro, como sempre fazia. Tinha medo de não o encontrar. Cair era o medo maior. Entrou. Apertou o último botão. Ofegava. Arfava mesmo. Quase não conseguia arrebanhar os poucos centímetros cúbicos do oxigênio de que precisava para continuar viva. As mãos manchadas de um rubro cintilante, ainda morno, pintando os botões iluminados daquela caixa. (As mãos vermelhas).

Parou dois andares abaixo. Alguém chamara o elevador. Quem quer que fosse, não entrou. Continuou a descida. O abdômen doía muito. Doía e pingava. Gotejava.

Olhou para baixo, para os próprios pés, a tempo de ver as pernas brancas listradas de vermelho. As unhas do pé direito com pequenas poças nos cantos encravados.

(O elevador descendo). Menos de dez andares, e o espelho olhando de volta. (Espelhos em elevador permitem à claustrofobia a fantasia de respirar, pensou). No espelho, ela. Lânguida, branca até. Pernas longas, finas, listradas e nuas. Nua dos pés à genitália. Nua a ponto de assustar uma empregada doméstica que subiria no oitavo andar. (Gritou e correu a infeliz). Uma velha senhora. Possivelmente ficara horrorizada com sua nudez tingida.

Apertou para que a porta se fechasse e cortasse o grito ao meio. O resto dele ficou oco, do lado de fora. E o elevador descia ainda, para algum lugar, lento e constante e cotidiano.

Correu as mãos úmidas pelos longos cabelos. Tão macios àquela hora da manhã. Ainda desfeitos... Puxados desde a nuca, doendo desde a raiz, desde os ossos do crânio.

De repente ouviu meias frases, pedaços que se esgueiravam para dentro entre um andar e outro. Restavam apenas cinco andares. (Sabia! Sabia, porque ali moravam crianças, e as crianças detinham o timbre correto da música que penetra elevadores). Apalpou no ventre o lábio rosado, recém-aberto, este lhe sorriu na altura do fígado, cuspindo seu vermelho inteior. Enfiou o dedo e depois outro. Hunnnf. Superficial? Levaria doze a quinze pontos. Nada além. Aliás, cicatrizes. (Mais uma. Menos uma). A última...

Quase lá. Quase no fundo. Quase de volta ao chão. Constrangeu-se, ainda de arma em punho. (Descarregada e feliz). Seis balas no peito. Seis tiros certeiros. (Não, um não!). Um cortou-lhe o dedo e arrancou a aliança que ela lhe dera. Cinco tiros no peito. Um não.

Então o elevador parou. Desceu devagar, distraída, e caminhou... (O térreo não estava. Inexistia). Não havia chão, só a vida, com o ventre rasgado à faca feito o seu. Caiu para ela... Dezoito andares, dezoito anos perdidos. Nua e lívida, mas triunfante.

(Conto escrito em Cuiabá-MT, em 05 de setembro de 2005, entre 23h10 e 23h53).