"PORQUE NARCISO ACHA FEIO O QUE NÃO É ESPELHO" (Caetano Veloso).

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

CONTOS AMANHECIDOS


O RUBI

O catador de papelão permanecia sentado ao lado do corpo, contemplando o brilho vermelho da pedra que tinha entre os dedos. Abandonada ao lado a carroça de homem-de-carga, ainda vazia; aglomeravam-se os passantes, eufóricos, mas silenciosos, para contemplar a cena. Eram seis da manhã.

As quatro e meia ele havia juntado os cobertores e deixado o mocó. Antes, como fazia todos os dias, examinara o bolso em busca do rubi. Estava lá, a pedra irregular, rubra feito a vida. Cedo ou tarde a venderia. (Bom dinheiro, bom dinheiro, sem dúvida). Iria comer todos os dias, todos um dias um sanduíche com duzentos gramas de mortadela e um copo de achocolatado, um não, dois. E teria casa. Era certo, bastava vender a pedra.

Dez anos que a levava consigo junto do peito. Seu tesouro. Encontrou-a entre caixas de papelão e vestidos. (Os vestidos? Os guardou enquanto esperava que a mulher voltasse. Mas como o encontraria? Ela, que se fora numa manhã branca, comprar o pão do dia enquanto lhe punham o barraco a baixo. Não voltou. Sem ela e sem o pão ele se aquietou, sentado junto aos entulhos, até que fome lhe rasgou as carnes e a falta lhe ardeu nos olhos).

Os deu para uma dona. Seis ou sete anos depois. Uma dona que lhe abriu as pernas e fez a saudade dela aumentar. Não tinha mais os vestidos, mas o rubi... Com uma casa ela voltaria. Endereço fixo, sanduíche de mortadela, macarrão com frango no domingo.

(Guardou-o para ela até aquele dia)... Andou os quilômetros de sempre e, sempre, como fazia sempre, sentou-se para descansar antes de percorrer as ruas habituais. Coçou o rubi no bolso. Tirou-o devagar e enamorou-se dele, porque era vermelho como os lábios dela, e tão vermelho quanto a saia e tão vermelho ainda, quanto o fogo dela.

Entretido que estava mal sentiu o outro que se achegava. Só se deu conta quanto lhe arrancou a pedra da mão e partiu para o meio da praça feito cão ladino. Pôs-se atrás. Corria bem. Cinquenta anos nas costas, doze de carroça, mas com pernas fortes. Vinte passadas largas e se atirou sobre o sujeito, derrubando-o.

Deu-lhe de punho fechado. Na nuca, nas costas. E quando se virou, deu-lhe no rosto e nos dentes, mas o malandro não soltava. Resistia, esperneava. Só depois de lhe prender os braços sob os joelhos foi que teve certo domínio. Vendo-o ali, de mão cerrada, lutando para se desvencilhar, não lhe restou maneira. Trançou-lhe as mãos em volta do pescoço e apertou. Apertou. Apertou. Lhe fugiram os olhos, foram indo. E os olhos eram ela, ela fugindo, escapando. As forças se abatendo lentamente, escoavam; lembranças. Até que o sujeito parou de respirar e ele pôde ter de volta a sua pedra. Arrancou-a de entre os dedos ainda quentes.

Quando chegou a polícia ele estava inerte, absorvido pelo brilho da pedra.

Tomaram-na de sua mão sob protestos e gritos. Tempo em que um o algemava e o outro a examinava detidamente.

“Vamos embora”. E o meteram na viatura. Antes, porém, o outro policial se livrou da pedra que trazia na mão. Jogou-a pela janela.

“Meu rubi”. Chegou a dizer, e os policiais riram; riram porque cacos crepitaram na calçada assim que vidro grosso a tocou.

Já se distanciava o carro; ele permaneceu contemplando. Estrelas frágeis de fogo e sol sendo varridas junto das folhas mortas pela noite...

Não a teria de volta, nunca mais...

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