"PORQUE NARCISO ACHA FEIO O QUE NÃO É ESPELHO" (Caetano Veloso).

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

CONSTRUÇÃO


[Imagem: Picapedreros - Gustave Coubert
Vídeo:  Coração vagabundo - Gal Costa]

Feito cigarro que não para de queimar
Mesmo depois de abandonado.
Feito tempestade que, mesmo dissipada,
Deixa enxurrada como lembrança.
Feito vulcão
Que não sabe se extinto
E, por isso, fumega das entranhas.
Feito cavalo selvagem que por ausência de saber impossível
Voa nos prados seu desejo pássaro
Incapaz de ser contido.

Feito palavra que, sozinha, encaixa
No fim da frase
Quando a voz deseja outra.
Feito céu de outubro avermelhado.
Feito poeira sobre livros em porões,
Esperando que dedos a violem.
Feito Deus brincando de esconde-esconde
No dia final da criação.

Feito espada que seja puro fio,
Feito espelhos em sobreposição,
Feito instante de revelação secreta e surpreendente,
Feito harpia quando estende as asas,
Feito farol acasalando luz em frestas de neblina,
Feito espasmo involuntário.

Meu coração é puro calo,
Meu coração bombeia a emergência sensorial
Para todos os confins de pele, cabelos, células.

Meu coração abriga correntezas
E não admite barragens;
Arrasta pedras, ciscos, troncos imensuráveis,
Lança-os à margem de mim
E eu sigo,
Com tudo o quanto me traz,
Construindo castelos assombrosos.

Belos e assombrosos castelos.

[Dos: POEMAS RECÉM-NASCIDOS]

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

PALAVRAS PERIGOSAS


[Imagem: A perigine falcon with a ptarmigan - 
Richard Ansdell
Vídeo: King of pain - Alanis Morissette]  

…Escrevo com a carne.

Com freqüência não tenho sono
Outras, sou apenas sono e languidez.

Sofro de pavores e fobias de quase tudo o que me cerca.
Aprisionado me sinto menos vulnerável
E, portanto, seguro de meus medos, intimamente distantes.

Movimentos peristálticos e emoções controversas, deveras
Assoberbado, tomado por sons e reflexos involuntários
Quase um animal, instinto puro, fúria e desejos,
Hidrofobia encapsulada, presente, constante, visceral...

A perseguição da palavra é meu exercício de caça
E nos caçamos e escondemos um do outro simultaneamente
Até que seja inevitável nosso encontro no meio de um poema
E ela me espreite e eu a espreite com olhos assustados.
Ansioso, mas profundamente reverente ao seu poder.

Palavras perigosas sabem de mim melhor que ninguém,
Conspiram para que eu não descanse de viver um só segundo,
Para que o sossego não se apodere de meus vícios, amansando-os.
Regem o coro voraz dos lobos uivando na noite imaginada
Letárgica, lisérgica, terrivelmente real – real demais,
Viver, resistir, olhar-se no espelho – são palavras perigosas.

Companheiro do escuro cuja sombra é boa túnica
Eu me olho muito profundamente quando a noite cai
E cada dia sou o mesmo e ao mesmo tempo estranhamente diferente
Como se um outro me reconhecesse quando eu o olho,
Sem que eu fosse capaz de reconhecê-lo dentro de mim.
A escuridão inevitável – quando encarada com força – não assusta,
Tem-se apenas de tencionar os músculos para que não se rompam.

Crescente, metricamente interessante e muito perturbador
Deve ser um poema – assim como um auto-retrato surrealista.
Predisposto a retratar de dentro para fora a cor ocre e o cheiro cru
Das vísceras – e, como se não bastasse – a alma, desde seu âmago.
Eu não durmo bem há dias e os dias me perseguem durante o dia
Pelo cansaço o qual me imprimem sobre os ombros, peso, peso secular.
Eu enfrento um de meus medos a cada vez que saio de casa
E, muitas vezes, fujo deles, desesperado, em silêncio, dentro de mim.

Nasci há mais de trinta anos e ainda tenho sete, e já tenho setenta anos,
A verdade é que nenhuma causa me mantém atrelado ao tempo
E, portanto, envelheço e rejuvenesço com uma rapidez estúpida.
Meu cansaço, meu dicionário flácido, meu escárnio essencial
De tudo o que é raso, mesquinho, metódico e seguro
São escudos atrás dos quais me protejo de enxergar frontalmente
O quão simplório, comum e cotidiano tenho sido e ainda mais o serei.
Abutres de meus dedos, chacais de meus olhos, grasnar de corvos
Sobre o poema – a presa ainda se debate.

Eu escrevo com a carne...


[Dos: POEMAS PERDIDOS NO TEMPO]

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

JOSÉ RUI ME MATOU


[Imagem: Studie eines mannlichen torsos  - 
Jean-Auguste Dominique Ingres
Vídeo:  Tanto mar - Chico Buarque]

Tornava para casa depois de um dia de quase tudo. Um dia de agenda. Nem bem atraquei à margem do portão, me interrompe o moço da guarita. Desço o vidro do carro e ele me estende o pacote.

Mas, quê? Pacote parto, por essas bandas onde ninguém me sabe o nome? Quando me escrevem – os que me escrevem – o fazem por meios mais ágeis. Mandam recados eletrônicos. Mas o pacote tinha marcas de mão. Entrei, estacionei. Li o destinatário (para ter certeza de que não era engano). “Bom, é para mim!” Concluí.

Tanto tenho me habituado às distâncias silenciosas que chego a desacreditar em cartas. Tudo em meu universo vagarosamente se tornou virtual. Nesse universo onde o nada e o tudo coexistem irmãmente, tenho aprendido a amar com intimidade quem não conheço. Como Neuzza Pinheiro e seu “Eukatlan; como Zélia Guardiano – guardiã das simplicidades; como Eliane Elianinha, que forja armaduras enquanto escreve; como Lara, se desmanchando em letras. Como tantos mais que me flecham com palavras pontiagudas.

Mas aquele pacote escrito à mão me arrastou para os subúrbios do universo, como um cão que arrastasse atrás de si, com fome e prazer, a ossada de um mamute.

Entro no elevador e abro. Era a promessa.

Desde o outro lado do mundo, lugar a partir de onde nossas raízes ecoam, a poesia embarcou em caravela moderna e veio desbravar-me.

José Rui Teixeira, descendente híbrido de Camões, Pessoa e Sá-Carneiro atracou sua nau de letras em meu porto, fincando-me bandeira portuguesa. Tornei-me território incorporado, quiçá uma nova “Ilha de Vera Cruz”.

Este poeta teve o cuidado e a delicadeza, próprios dos nobres de alma e linhagem, de cumprir uma promessa virtual, forjada depois de dois e-mails. E eu, que tenho redescoberto a forca inescrupulosa da poesia concebida no coito violento dos teclados recebi, maravilhado, o filho feito matéria deste poeta, seu livro “Diáspora”.

Bem, daí advém o título desta crônica: “José Rui me matou”. Primeiro por dar corpo à promessa; depois pela artilharia pesada de seus versos. Prostrei-me diante deles e fui alvejado direto no peito. Sangrei desde o imaginário e caí, com gozo vermelho vazando da boca e dos demais sentidos. Atingiram-me, primeiro, Zerbino e Ataúde; os demais sacramentaram minha condição de alvo. Alvo da beleza aflitiva, tipo de beleza que descarna e empresta novo sentido ao que se denomina beleza.

Agora estou aqui, desfalecido e feliz. Assistindo nuvens vermelhas roubarem restos de sol. Com razões de sobra para amar ainda mais Eliane, Neuzza, Zélia, Lara, Cecille, Vera e todos os demais.

O virtual existe. Qualquer que seja a forma de se manifestar.

Essas pessoas sem carteira de identidade me provam isso todos os dias. Assim como José Rui Teixeira me provou com seu presente.

A distância não existe e, se existe, as palavras são capazes de exterminá-la.

[Das: CRÔNICAS DO DIA]


Para conhecer um pouco da obra de José Rui Teixeira visite: 

www.equinociodeoutono.blogspot.com

sábado, 4 de dezembro de 2010

CHÃO DE PÉROLAS


[Imagem: The jewel case - Guillaume Seignac
Vídeo:  Meu fado meu - Mariza]

Deitaste ao chão tuas lágrimas salgadas
Para regar as rosas de meu caminho.

Eu te deitei pérolas.

Colheste ao campo os delicados lírios do oriente
Com os quais me perfumaste os pés.

Eu te colhi âmbar.

Roubaste palavras novas para brilharem
Na escuridão de minhas angústias.

Eu te roubei brilhantes.

Trouxeste mãos clementes, olhos mansos e suaves
Para fitarem o fundo de meus olhos vermelhos.

Eu te trouxe rubis.

Foste o fértil vegetal, a árvore cuja sombra
Tomou de meus ombros o cansaço.

Eu te fui o aço.

Tu me levaste pela mão com a pressa dos famintos,
Arrastando-me por jardins e lamaçais
Onde, não sei...
Atrás de mim os meus rastros, mas só os meus,
As tuas pegadas, não as reconheço mais.

Tu me deste de beber de teu leite sagrado,
Levaste de meu corpo o grosso sangue e o suor,
A mocidade...
Sinto, então, o peso do teu corpo no meu corpo,
Nosso universo expansivo, mais e mais fundo, muito maior.

Plantaste estrelas mansas em meus sonhos infantis
Para que eu forjasse delas douradas esperanças.

Eu te plantei ouro.

Esta sempre foi a minha resistência, é bem verdade,
A minha teimosia, é bem verdade,
A minha confissão de culpa, a bem da verdade,
E a minha profissão de desespero e fé, minha verdade
Hasteada, visível, porém discreta.

Bem me lembro que no dia derradeiro em que nasci
Assim se fez, (e se repete):
Varri as folhas e juntei os ciscos,
Afastei safiras das garrafas que os embriagados
Atiraram contra as pedras e contra a noite,
Rastelei as algas, companheiras da maré,
Soprei todas as impurezas da areia
E antes que amanhecesse
Semeei pérolas ao chão.

Veio o sol ver o ladrilho que te fiz,
Quedou-se envergonhado, recuou.
Durante todo aquele dia
Choveu.

(Desde então chove,
Desde então resistimos e pisamos, delicadamente,
Nosso chão de pérolas
Molhadas)...

[Dos: POEMAS DO ESTOQUE]

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

O DUELO


[Imagem: Wrestlers -Thomas Eakins
Vídeo: A tanto duol - Do filme: O mestre da música]

Nos tendões resilientes se adensa a gravidade;
Para baixo, maças e alteres e âncoras arrastam.
Fibra após fibra arqueia a superfície da atmosfera
Em órbitas geocêntricas de se autoconsumirem.

Pisasse em gigantesco platô de puro mármore o marcaria
Com exuberantes pegadas; faria, de rastros, um desenho
Que em linha reta seria capaz de parecer com um alinhavo,
Delicadamente bordado na bainha pedregosa.

Mas o mármore deu lugar ao charco, assim como o platô,
Que fez-se, de acanhamento por tanta densidade, rente ao chão.

Atração magnífica que a terra exerce sobre os corpos,
Essa que traz o universo e o dependura na ossatura,
Fazendo rangerem alto as articulações, comprimirem-se os nervos.
Atração que impede a água de flutuar, os homens de serem vento.

Há dias em que a Via-Láctea ancora na planta dos pés,
Grativam, o ânimo e a determinação, próximos a buracos-negros.
Há dias em que a pele transpira correntes, e os cabelos,
Lisos ou em anéis, ganham matéria de lingotes ou de dormentes.

Há dias em que a massa orgânica cede ao assédio mineral
Para dar conta do peso que se lhe avoluma; cede ao bronze, ao granito.
Convergem do imo ondas de magma, nuvens de cinza radioativas.

Nesses dias se conhece de que substância é feito o homem,
E se separa, pela ação voraz dos elementos, os que derretem
Dos que se permanecem intactos – colossos metálicos,
Concebidos na forja das vicissitudes, de estar vivo e de pé.

Nesses dias carvão vira diamante. (Ou é absorvido pelas profundezas).

[Dos: POEMAS RECÉM-NASCIDOS]

sábado, 27 de novembro de 2010

A INVASÃO DAS ESTEPES


[Imagem: Atlas holding up the celestial globe - Guercino
Vídeo:  My immortal - Evanescence] 

Sentimentos desterrados me margeiam,
Pedem asilo e denunciam o fim da marcha.
Vão, de certo, invadir-me o campo de trigo,
Acampar em meus arrozais floridos,
Vão fazer asseiro nos limites do piquete
E lançar fogo no chão onde brotava a perfeição.

Sentimentos aflitos em procissão,
Descem por ruas esburacadas carregando lamparinas.
Rezam, mas se rezam nada dizem,
Porque os ouço clamarem no mais absurdo silêncio.

Sentimentos famintos e necessitados, em andrajos,
Assomam à minha porta e batem.
Quando os vejo pelas frinchas, por entre tábuas,
De tão magros e frágeis que me parecem,
Tenho a impressão de que seriam capazes de se esgueirar
Por qualquer pequeníssima abertura.

Sentimentos exilados por serem feios ou fortes,
Sentimentos expulsos por seu peso ou suas marcas,
Em bandos, celebrando acordos para o motim,
Achegam-se uns dos outros e dão-se as mãos.
Repicam no assoalho seus incontáveis calcanhares
Fazendo ecoar dentro de mim a orquestra de tambores.
Anunciam formalmente para o que vieram.

Sentimentos renegados, dados à adoção,
Abandonados em cestos de vime, sob portais alheios.
Sentimentos órfãos; pensava que pudessem ter sido levados
Para o trabalho escravo num outro país.
Voltam agora, macérrimos, porém crescidos,
Armam suas tendas, hasteiam suas flâmulas rotas,
E para me manterem constantemente desperto
Gritam em coro: pai, pai, pai, pai, pai.

[Jamais voltarei a dormir].

[Dos: POEMAS RECÉM-NASCIDOS]

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

ESCALENO


[Imagem: Gymnast - Eugène Fredrik Jansson
Vídeo:  Hard times come again no more -
James Taylor e Yo Yo Ma]

Mandacaru no centro do cerrado bebe quentura.
Se lhe cortarem um braço vai gosmar sangue, transparente
Como um raio de sol ao meio dia no centro do olho.
Eu me abraçaria a um mandacaru enorme
E faria sexo com ele
E teríamos um filho cujo nome doeria:
Silêncio.

Cerca de arame farpado se enfeita de cabelos.
São lembranças dos bois brabos que se enamoram dela.
Limpá-la seria o mesmo que rasgar as cartas de seus romances.
Eu arranharia numa cerca as minhas costas
E deixaria a minha carne
Se ela me quisesse
Ao invés dos bois.

Caraguatá abre as pernas para água de chuva.
Fica lubrificado e deixa escorrer até o chão seu gozo,
Colhendo só o que lhe cabe nas entranhas.
Eu dormiria nu sobre o caraguatá em flor
E ele me faria ouriço de seu amor,
Beijando-me, pontiagudo,
Cada centímetro.

Serpente de brejo incendeia a tarde com seu bafo.
Houvesse fagulha diante de si implodiria em brasas, carne e peçonha,
Porque de gás são feitas serpentes tristes que vagueiam brejos.
Teria parido uma serpente de minhas entranhas
E ela por certo seria a parte de mim mais branda.
E o meu nome e o seu nome ainda seriam um só:
Solidão.

 [Dos: POEMAS DO ESTOQUE]

terça-feira, 23 de novembro de 2010

PRÓTESE-CAJADO


[Imagem: Stud of male nude - David Davies
Vídeo:  Cruzada - Boca Livre e Renato Braz]

Deus me deu esse cajado
Com o qual sulco.
Ele me sustenta.

A aparência equilibrada
Resulta do exercício
De transformá-lo em membro.
E assim tenho
Um braço mais longo,
Que é parte vivo
E parte madeira imaginária,
Embora não se denuncie como tal.

Para me manter ereto
Escoro minhas incertezas
Nas palavras.
Elas suportam
Seu peso.

Quando Deus mo deu,
Por certo não sabia
Que eu o mimetizaria.
Quando Deus mo deu
O fez
Mais por piedade que por bênção.

Meu cajado vernacular,
Escasso e raso,
É o que impede que eu rasteje.
Que eu me torne um réptil
E jamais volte
A ficar de pé.

[Dos: POEMAS RECÉM-NASCIDOS]

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

UM CRIME DELICADO


[Imagem: Birdcage - Nicoletta Ceccoli 
Vídeo: Je Crois Entendre Encore -David Gilmour]

Ter uma gaiola de ouro
Para um canário raro
Cujo canto alegraria toda uma aldeia.

A gaiola cerrada
Coberta por encarnado tecido
E o canário dentro dela
Sem ouvintes, sem ouvidos
Para beberem de seu delicado bico
Uma nota sequer.

***

Muito ingenuamente tateio
O veludo carmim de minhas dúvidas.
Como se tudo soubesse e tudo ignorasse por completo
No momento seguinte da palavra.

Acossado, suspeito e já admitindo a culpa.
Um gato ladino, um felino perfeito
Auscultando os movimentos
Tristes ao fundo da gaiola,
E ronronando seu desejo desde o estômago,
Faminto de muito mais,
De muito além da carne,
De muito além da beleza,
Faminto do canto e da tristeza aprisionados do canário.

***

Os versos que escondo...

***

São douradas as barras
Que sustentam a gaiola e a tornam gaiola?
É, de fato, um canário raro
Ou somente uma ave canora de terceira grandeza
No firmamento dos pássaros perfeitos,
Essa ave?
Há um felino ladino pronto a saciar sua fome visceral
Ou é apenas fome passageira
De um bichano velho
E sem dentes?
É carmim o tecido
São de veludo minhas dúvidas
Ou ambos são farrapos,
Fantasias, croquis,
Rabiscos e ilusões?

***

Os versos que escondo...

***

Por amor.
Cruel, egoísta e profundamente covarde.
Pavor e frenesi,
Desespero, apego, dúvida e desconfiança
De que não haja canário
De que não seja raro
De que não haja gaiola
De que não seja dourada
De que não haja tecido
De que não seja carmim
De que não sejam nada
Os versos que escondo...

***

Desde o alçapão que o prendeu
Até a mão que o alimentou
E os grãos dos quais comeu
Com vontade e servidão,
Tudo pode ter sido
Imaginação fugaz...
Desde o gato,
Desde o tecido,
Tudo o que foi construído
Pode não ter sido,
Jamais...

***

Os versos que escondo...

***

O preço da redenção é a assunção da culpa
Para o pecado planejado e inevitável...
Os versos que escondo,
Os escondo,
Como a um pássaro encantado
Para o qual não tenho olhos,
Para o qual não tenho ouvidos,
Só sentimentos em chamas
Prestes a darem vazão
A um crime delicado.

Com a mão – e só com ela,
Sem olhar – tateando,
Desfraldo o rubro tecido,
Abro a fechadura dourada
E me detenho no momento fatal
Como um gato prestes a saltar...
Estaco, titubeante e fraco,
Ignorando por completo
O irrevogável destino da mão:
Sem ter certeza se o solto
Ou se, por suave compaixão,
Rompo seu fino pescoço,
Silencio de vez
Seu canto
Sem ouvinte...

***


[Dos: POEMAS DO ESTOQUE]

[Um adendo (coisa que normalmente me recuso a fazer): Escrito originalmente par ao livro "A Minha Idade de Cristo - Poemas crucificados e poemas ressurretos". Resisti a publicá-lo por muito tempo. Hoje ele me pegou de jeito e não houve como me esquivar. Ele mandou, eu obedeci (como sempre o faço, aliás) Creio que a concessão se deve ao fato de seu sentido ter esmaecido com a criação de >NO ESPELHO<, mas nunca saberei ao certo, por isso cedi. E se posso pedir algo, me permitam, peço: ouçam a canção. Ouçam-na.]

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

ÊXODO


[Imagem: Winter - Thomas Eakins
Vídeo: Another suitcase in another Hall - 
De: T. Rice e A. L. Webber - Trilha do filme "Evita"]
   
Quando o espaço se encolhe
Para dentro
E o pássaro se torna gaiola
Dele mesmo;
Perguntas tragam
O silêncio para si
E num turbilhão de folhas
O vento ecoa, lamenta.

Quando a água não suporta
A leveza e se permite ao frio,
Lacrimeja o firmamento
Diamantes de granizo.
E os homens juntam
Joias imprescindíveis,
Emendam-nas, rosários,
Ou tiaras ou gargantilhas.
Ornam-se de brilhantes
Que se derretem.

Quando o tempo retrocede
Em desfavor,
Marcha, de costas,
O batalhão de horas e minutos
Ao som de tambores.
Aplainam-se os precipícios,
Nivelam-se os montes,
Tac-tiqueiam os relógios
Dos pulsos e das catedrais,
E os corações repicam
Descompassos.

Quando o fumo essencial
É dissipado a sopro,
E se dança tangos com colapsos.
Quando estátuas enraízam
Em jardins de mármore
E florescem, travertinas.
Gárgulas fazem ninhos
E chocam
Pedras de amolar.

Quando o signo deletério,
Capricorniano,
Das revoltas sem remorso e sem virtude,
Causa calafrios.
Inquietações secas e desérticas
Vêm se alojar,
Eu migro para fora.
E de lá observo o pau-de-arara
Levar para o sul a minha paz,
Repleta de esperanças
Pluviais.


[Dos: POEMAS RECÉM-NASCIDOS]


 

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

HABEAS-CORPUS


[Imagem: A lily - Eugène Fredrik Jansson
Vídeo: Primitive - Annie Lennox] 

Fende pedras,
Calçadas;
Porque tem força
O que é para ser,
E se rebela ao claustro
Irremediavelmente.

Não se detém.
O peso da terra,
A agressão úmida,
O concreto armado
Como lápide.
E a semente urge.

Não para
O que tem de ser.
Não pede arrego.

A flor arrebenta o cimento
E cresce no imponderável,
Manchando de beleza
Todas as contrariedades

A flor vinga,
A flor prova
Que para o que há de ser
Não há freio.

Não se amestra
O que nasceu
Para ser livre.

[Dos: POEMAS RECÉM-NASCIDOS]