[Imagem: Viajante sobre Mar de Nevoeiro - Caspar David Friedrich
Vídeo: Van Diemen's Land - U2]
Vou me jogar daquela ponte E sem demora. A ponte, precipitando-se, tenta coser; Liga-me dos pés à cabeça De modo que, ao me olharem de repente, Nem percebam Que sou um abismo.
Precipito-me para o alto e volto. Gravito meus arcos, esteios, vigas. Lastros que se vão alastrando Abaixo do céu, Acima da terra, Além da consistência imutável. Vou me jogar daquela ponte, Dragar-me e desaparecer Dentro de mim Que sou um abismo.
Entre um barranco e outro, Lá estou, pesado, mas flutuando. Desexistindo, contudo, presente e fundo. Somente a ponte me dá dimensões, Dimensões de inexistir. Vou me atirar daquela ponte E sem demora. Vou ser abismo completo Sem fronteiras, Impossível de ser atravessado.
[Imagem: The little violinist sleeping - Antoine Auguste Ernest Hebert
Vídeo - Wake me up when september ends - Green Day
Ao vociferar explosivo do cacho de bougainvilles A vidraça treme o carmim-solferino que a transpassa. Vem colher-me aquele tiro de cor Cuja espoleta é a própria luz irradiada – contra-muro, E, como alvo fácil, fatigado, Tombo sangrando invisivelmente. Beleza violenta e certeira.
Listram-se persianas, Escorrem tremeluzes derretidas Alagando o carpete até os pés da moça. E meus olhos arvorados, carcomidos pelas entrefrestas, Refugiam-se, castrados, num ponto ou noutro Onde seja possível sobreviverem ao que lhes resta. Os bougainvilles disparam, frenéticos, Projéteis teleguiados Diretamente contra minhas retinas desprotegidas.
Como passa a manhã sobre os papéis! Maços de cartas, datas amassadas, calendários. (E eu, que anteontem era moço). As teclas de um a nove ou de um a zero, E todas as canetas em alinhamento marcial. Como se agora, e só agora, tivesse me ocorrido Que foi transe alucinógeno e nada mais. (E eu, que anteontem).
Meus cabelos excessivamente curtos e brancos, Meus ombros largos e fatigados, Meus dentes de siso inclusos e decíduos Meus dias devotados à paz insípida. Meus pés dentro desses sapatos caros.
Tudo passa Mesmo o cacho de bougainvilles. Mesmo o cacho de bougainvilles que, Antes ainda do dia de finados Não será nada além da lembrança carmim-solferino De toda a sua beleza. Ou será, será, por ter sido exatamente aquilo: A lembrança carmim-solferino De toda a sua beleza.
Petra subiu à torre para orar, Para orar ao próprio reflexo E, enquanto orava, reconheceu A deidade que a habitava.
Petra subiu à torre para olhar, Para olhar o próprio reflexo E, tanto que olhasse, mais e mais Ele se gastava Contra o céu no horizonte em chamas.
Petra subiu à torre para ornar, Para ornar o próprio reflexo E, ornasse com fitas, laços ou flores, Ainda assim lhe pareceria Desoladoramente opaco, Brutalmente liso e regular.
Petra subiu à torre para ocupar, Para ocupar o próprio reflexo E, no termo com que avançava, Mormente se perdia em si – ou de si. Um barco rumo ao nevoeiro, Um pássaro contra o sol, Um seixo atacado ao rio.
Petra subiu à torre para observar, Para observar o próprio reflexo. Observar-se, mutuamente, com o que não era. Feito bolha de sabão Que por meio enigmático pairasse Diante dos olhos indecifráveis Da mais indecifrável de todas as gárgulas Da torre onde Petra subiu.