"PORQUE NARCISO ACHA FEIO O QUE NÃO É ESPELHO" (Caetano Veloso).

terça-feira, 16 de outubro de 2012

ORAÇÃO AUSTERA



[Imagem: Naked young man sitting by the sea - Jean Hippolyte Flandrin
Vídeo: Um contra o outro - Deolinda]

Eu te bendigo pela fúria com que me castras as palavras
Para que não tenham pernas nem testículos demais.
Pela avareza que me cobras quando estendes a língua e ela está seca
E também pela demência com que me presenteias
Antes mesmo que me levante.

Eu te bendigo com ardor e medo, mas não covardemente,
Com algum mistério provendo cada pequeno segundo
Entre uma respiração e outra, entre suspiro e suspensão.
Com nesgas de rancor, acessos e rangeres de dente,
Do alvorecer à antepenúltima nota de escuridão,
Enquanto caem as folhas das árvores
Os cílios dos olhos e a pressão arterial.

Eu te bendigo em fibras tensas, musculares, maculadas.
Eu te bendigo com duas espadas: uma em punho e outra
Sagradamente suspensa sobre a cabeça, dependurada em tênue fio.
Os cerrados por onde alastras perfumes de secura
E as matas fortes, suadas e muito úmidas, mas incansáveis,
Ambos carregam o teu destino impregnado
E, igualmente, em ambos e por ambos eu te bendigo.

Eu te bendigo perante a autoridade e diante da turba,
Porque estendeste o arame sobre o qual caminho
E nele depusestes nenhuma segurança.
Pelas lanças que me aguardam, ansiosas, eu te bendigo e rio,
Enquanto atravesso, dançando acima delas.
E te bendigo pela generosa escravidão,
Essa que não me permite cair.

[Dos: Poemas recém-nascidos]


quarta-feira, 13 de junho de 2012

A FALHA NO PERGAMINHO



[Imagem:   Office in a small city - Edward Hopper
Vídeo:  Back to black - Amy Winehouse]

Findas as coisas velhas,
Desbotam-se brochuras onde esteve escrito
O tempo em tintas de apagar.

Vejo o horizonte no infinito, a se confundir.
As luzes do ocaso e da aurora têm o mesmo gosto doce
De quando eu era criança. O mesmo gosto doce.

O bastidor onde se estica a vida
Para que se possa tecer, fio a fio, ponto a ponto,
A história,
A partir de algum tempo
Já não prende o tecido como deveria...
Bordamos torto, então, bordamos torto o bordado dos dias
Para que, de assimetrias, vivamos.
Tortos, mancos e belos, ainda que irregulares.

E como me caem as folhas.

Como na brochura amarelada
Onde escrevi a minha vida
Em tintas de apagar...

Depois do tempo, eu não terei sido.

Dos: [POEMAS RECÉM-NASCIDOS]

domingo, 4 de março de 2012

LIBERTAS



[Imagem: Orpheus - Franz von Stuck
Vídeo: Poema - Ney Matogrosso]

Mesmo as pedras, que de tão imóveis lacrimejam musgo -
Lamentos pela liberdade que não têm -
Sabem e pensam e aspiram asas;
E se pudessem seriam igualmente aladas, ainda que não se elevassem.

Uma pedra de beira-mar é capaz de contar todo o oceano
Em um único verso. Um verso de vai-e-vem.
Uma pedra de penhasco contaria o vento, em assovios.

Desde a primeira idade, quando sente o assombro de si, por existir,
O ser humano realiza asas, espaço e desprendimento.
Todo homem nasce pássaro, nasce céu, só depois é que encarnece.
A gravidade se incumbe do voo; as penas, por penas se dão.

Faculdade amorfa, ânima cujo tênue esqueleto a ninguém se molda.
Pomba invisível arrulhando sobre as cabeças, cagando esperanças.

Liberdade.

Todo homem nasce livre e nu - envolto em sangue.
Todo o resto o engaiola.

[Dos: POEMAS RECÉM-NASCIDOS]


quinta-feira, 1 de março de 2012

UM HOMEM TODO



[Imagem: The berry picker - Andrew Wyeth
Vídeo: Lonely day - System of Down]

Um homem, ao acordar, está completamente só.
Realizar o mundo em torno do homem que acaba de acordar
É planejar esvaziamentos para o nada.


Um homem, ao acordar, é o universo sendo pensado.


Um homem, ao se curvar, deserda os próprios tendões.
Interpretar o tino do homem curvado sobre a espinha ou os joelhos
Se assemelha a mediar diálogos entre abismos e quasares.

Um homem, ao se curvar, implode os genes de sua descendência.

Um homem, ao cantar, no fim de uma tarde que esteve quente,
Declara-se irremediavelmente perdido; destronado, que seja.
Assiste ruírem delicadamente os pilares do que o faz ordinário.

Um homem, ao cantar, desenha com sons um labirinto.

Um homem, ao saber-se, descobre-se derivado e à deriva.
O ofício de traduzi-lo é tão cartográfico quanto o de ocultá-lo;
Demanda o uso de bússolas raras - as que apontem para dentro.

Um homem, ao saber-se, está prestes a se tornar terrivelmente perigoso.

[Dos: POEMAS RECÉM-NASCIDOS]



sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

INSTÂNCIA CADENCIADA



 [Imagem: Eric Fischl - A Corrida
Vídeo: The Wallflowers - Three Marlenas] 

Resisto a tua espada
E à ponta de teus chifres.
Às investidas urgentes
Com que me queres abalroar;
Resisto ao teu ferrão,
Ao teu ranger de dentes.

Só o teu espírito me perfura.

As farpas com que me coses
Têm cores e sentidos;
De modo que me veja, onde antes era alvo,
Inteiramente colorido.
Com cores lancinantes,
Com cores que ouvem e murmuram.

As margens da estrada permanecem calmas.
Pousou a poeira sobre as emergências
E estancou a artéria do tempo, que vazava.
A poeira sobre mim, repousa,
E tudo com que me atacavas
Parece-me inofensivo.

Resisto ao arpão com que me queres encantar,
Não por temê-lo,
Mas por ter certeza que jamais me o acertaria.

Só o teu espírito me perfura.

[Dos: POEMAS RECÉM-NASCIDOS]


terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

PÉTALA POR PÉTALA



 [Imagem: Anjo caído - Miguel Angel Eugui
Vídeo: Não vou me adaptar - Arnaldo Antunes e Nando Reis]

Pétala por pétala
Me sublimo
Tanto mais caem-me pétalas
Tanto mais eu as lastimo.

Pétala por pétala
Me desfolho
Até que sobre de mim
Só o que caiba em teus olhos.

Pétala por pétala
Me desgasto
Adiante vão as imagens
Para trás restam os rastros.

Pétala por pétala
Me debulho
Como pombos que, calados,
Debulhassem seus arrulhos.

Pétala por pétala
Bolha e escuma.
Pétala por pétala
Uma por uma.
[Dos: POEMAS RECÉM-NASCIDOS]

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

VOLATILÍSSIMA



[Imagem: Mind pollution - Laura Wächter
Vídeo: Paciência (versão acústica) - Lenine]

A paisagem se dobra no horizonte
Crescendo para o alto.
É um origami assimétrico assustador;
Grotesco e comovente
Como a imagem de uma pastora acalantando com os olhos
Os esqueletos de seus antigos animais.

Sob a abóbada gravitam meus conflitos,
Marimbondos, vespas, corvos enferrujados
Rangendo asas. Zunindo. Crepitando palidamente
Ferrões curvos, contundentes.

Da calma permanece o cheio, as derradeiras notas.

Volatilizada, esvazia o ambiente
Com a pressa própria dos desesperados.

Restam, ainda, inertes e despedaçados,
Os cacos do recipiente que a continha.

[Dos: POEMAS RECÉM-NASCIDOS]

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

HEMORRÁGICA


[Imagem: Paul vestido como arlequim - Pablo Picasso
Vídeo: Give me one reason - Tracy Chapman]

Queria que esse desejo

Fosse tirado de mim a canivete,
Que essa dependência saísse pela carne
Feito um osso comprimido
De dentro para fora.
Queria que a vontade da palavra
Deixasse de me queimar os tendões
E tudo fosse pacificado:
Como a cicatriz de uma amputação,
A sensação do membro mutilado
Ainda morna, mas amainando.

Queria que a abstinência ácida
Não me corroesse
E a falta de poesia não castrasse
A pouca delicadeza que me sobra.
Que a água dessa correnteza
Não me alcançasse, afogasse,
Que o ar que respiro não fosse inflamável
Tão próximo de minhas insignificâncias.


Queria que a palavra,
Afiada como é – faca, faca muito aguda -
Cortasse de uma só vez.
Irremediável.
Para sangrá-la definitivamente sobre o branco do papel.

[Dos: Poemas recém-nascidos]

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

ABISSAL


[Imagem: Viajante sobre Mar de Nevoeiro - Caspar David Friedrich
Vídeo: Van Diemen's Land - U2]

Vou me jogar daquela ponte
E sem demora.
A ponte, precipitando-se, tenta coser;
Liga-me dos pés à cabeça
De modo que, ao me olharem de repente,
Nem percebam
Que sou um abismo.


Precipito-me para o alto e volto.
Gravito meus arcos, esteios, vigas.
Lastros que se vão alastrando
Abaixo do céu,
Acima da terra,
Além da consistência imutável.
Vou me jogar daquela ponte,
Dragar-me e desaparecer
Dentro de mim
Que sou um abismo.


Entre um barranco e outro,
Lá estou, pesado, mas flutuando.
Desexistindo, contudo, presente e fundo.
Somente a ponte me dá dimensões,
Dimensões de inexistir.
Vou me atirar daquela ponte
E sem demora.
Vou ser abismo completo
Sem fronteiras,
Impossível de ser atravessado.

[Dos: POEMAS RECÉM-NASCIDOS]



sexta-feira, 28 de outubro de 2011

BOUGAINVILLES


[Imagem: The little violinist sleeping - Antoine Auguste Ernest Hebert
Vídeo - Wake me up when september ends - Green Day

Ao vociferar explosivo do cacho de bougainvilles
A vidraça treme o carmim-solferino que a transpassa.
Vem colher-me aquele tiro de cor
Cuja espoleta é a própria luz irradiada – contra-muro,
E, como alvo fácil, fatigado,
Tombo sangrando invisivelmente.
Beleza violenta e certeira.

Listram-se persianas,
Escorrem tremeluzes derretidas
Alagando o carpete até os pés da moça.
E meus olhos arvorados, carcomidos pelas entrefrestas,
Refugiam-se, castrados, num ponto ou noutro
Onde seja possível sobreviverem ao que lhes resta.
Os bougainvilles disparam, frenéticos,
Projéteis teleguiados
Diretamente contra minhas retinas desprotegidas.

Como passa a manhã sobre os papéis!
Maços de cartas, datas amassadas, calendários.
(E eu, que anteontem era moço).
As teclas de um a nove ou de um a zero,
E todas as canetas em alinhamento marcial.
Como se agora, e só agora, tivesse me ocorrido
Que foi transe alucinógeno e nada mais.
(E eu, que anteontem).

Meus cabelos excessivamente curtos e brancos,
Meus ombros largos e fatigados,
Meus dentes de siso inclusos e decíduos
Meus dias devotados à paz insípida.
Meus pés dentro desses sapatos caros.

Tudo passa
Mesmo o cacho de bougainvilles.
Mesmo o cacho de bougainvilles que,
Antes ainda do dia de finados
Não será nada além da lembrança carmim-solferino
De toda a sua beleza.
Ou será, será, por ter sido exatamente aquilo:
A lembrança carmim-solferino
De toda a sua beleza.
[Dos: POEMAS RECÉM-NASCIDOS]