"PORQUE NARCISO ACHA FEIO O QUE NÃO É ESPELHO" (Caetano Veloso).

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

CANÇÕES IMÓVEIS


[Imagem: An arab removing a thorn from his foot
- Leon Bonnat] 

Pássaros de porcelana
Recitam odes sacrílegas com seus bicos dourados;
Odes ao silêncio sacrílego-ensolarado.
E o dia desprovido de defeitos
Impera.

Perto daqui um cemitério de máquinas
Com toda espécie de metais
Aguardando o digno sepultamento.
As orquídeas do vaso
Antigas que são, se aquietam
E murcham

Canto para a maquinária desolada
Espíritos inanimados em completo abandono;
Canto para alegrar-lhes a ida,
Embora seja tarde.

Canto para os pássaros de porcelana
Estáticos, invejosos das aves libertas;
Canto para que tentem sacudir as plumas
Inventadas.

Canto para as orquídeas mumificadas
Nobres, apesar de murchas,
Canto para que se despeçam
De seus cachos.

E o dia isento de imperfeições
Parece desconfiar
Que canto sozinho.

Parece ter certeza
De que canto sozinho;
Canções imóveis, valsas
E réquiens.

[Dos: POEMAS RECÉM-NASCIDOS]

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

JARDIM SECRETO



[Imagem: O homem ferido - Gustav Courbet
Vídeo : Fogueira - Ângela Ro Ro]

Não deixe doer,
E se fundo doer, respire,
E não deixe florescer nos olhos a tua dor.
E se rubras tulipas tornarem-se os teus olhos, orvalhadas,
Não deixe que ninguém tenha o prazer de ceifar teu campo e colhê-las.

Não permita que vejam,
E se, oculto onde estavas, virem,
Não permita que saibam a razão secreta,
Acaso saibam, pois grande a evidência se tenha tornado,
Não permita tatearem dedos curiosos sobre a dália de tua carne exposta.

Não consinta demonstrar,
E havendo certa a impossibilidade,
Não consinta que desfraldem, públicas,
As flâmulas amargas do que, de íntimo, te rasga, e leva ao chão
O canteiro de margaridas despetaladas dos teus sonhos bem-me-quer.

Não tolere sofrer,
E se aos teus músculos for insuportável,
Não tolere que te vejam sobre joelhos arqueados,
Colhendo crisântemos, amarelos e tristes, num jardim de acetona.
Não tolere que assistam tua alma despetalar-se, teus espinhos serem 
                                                                                         [flor.

[Dos: POEMAS DO ESTOQUE 
Escrito para o Livro: "AGOSTO NEGRO 
- Poemas de cachorro louco"]

terça-feira, 28 de setembro de 2010

O PASTOR


[Imagem: Giotto gardant les chèvres 
- Leon Bonnat
Vídeo: O pastor - Madredeus]

Ovelhas que não sejam arredias
Campos íngremes
Que planos verdejem
Não cobicem lobos
E chacais
A inocência

Filhotes nascidos sem susto
Pastem em invernadas de prata
O orvalho fresco
Andem em companhia da manhã
Recém-parida
Juntos aprendam

Cães que rosnem baixinho
Para admoestá-las
Permaneçam à sombra
Vigiando contornos se formarem
Não temam as marrãs
Sacrifício algum
Nem seja a vida
Revertida ao corte

Recuse-se a chuva
Comova-se o vento e cesse
Brilhe morno o sol
Sobre seus anos perdidos
Em cuidado e pasto
E o pastor que volte
Ao fim de cada dia
Com o rebanho intacto

Ainda que emoções
O tenham desgarrado

[Dos: POEMAS RECÉM-NASCIDOS]


segunda-feira, 27 de setembro de 2010

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DA INFÂMIA INDIVIDUAL


[Imagem: David slaying Goliah -  
Peter Paul Rubens] 

Não serei aquele que se curvará
Aos formalismos é às modas.
Não serei o que se deixará comer pelo estilo desejado,
Não serei o homem modelo
Ou o homem exemplo do cotidiano.
Não serei limpo nas águas rasas
De tudo o que iguala a espécie.
Não serei melhor que a maioria dos facínoras
Nem pior que a soma de todos os covardes.
Não serei o arauto de causa alguma
Porque a minha causa é minha própria alma.
Não serei aquele que cede o lombo aos arreios
E deixa suas carnes em mãos limpas e afetadas.
Não serei poeta de vossos gostos,
Não escreverei versos para vossos quadros,
Não serei o cronista de vossas manhãs de sol,
Pois minhas manhãs são cinzentas
Sem deixarem de ser belas.
Não serei vosso ídolo,
Nem escravo de vossos vícios.

Serei aquilo que venho sendo
Desde o início,
Um escarnecedor do verso,
Um carniceiro do sentimento bruto,
Um animal erado subindo nas ancas das palavras
Com muita violência,
Suportando seus coices.

Serei um poeta pequeno e mesquinho,
Invejando o cheiro de sexo no poema alheio,
Querendo tê-lo metido no fundo do meu peito,
Em vai-e-vem de prazer e dor.
Serei o homem que devora com volúpia
A carne rosada da poesia
E depois adormece,
Com a boca ainda manchada de seu rubro sangue
E um cigarro apagado no cinzeiro
Do criado-mudo.

[Dos: POEMAS DO ESTOQUE]

sábado, 25 de setembro de 2010

QUEIJO E VINHO


[Imagem: Baco (Dionísio)
 - Michelangelo Merisi da Caravaggio]  

Éramos muito diferentes

Um sudeste
Outro hemisfério

Um sintético
O outro linho

De repente, dentro de um longo de repente,

Por obra do amor
[e a seu critério]

Nos entrelaçamos
Estreitamos.
Tornamo-nos

Fomos feitos
Perfeitos um para o outro

Como o queijo
Com o vinho.

[Dos: POEMAS RECÉM-NASCIDOS]

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

RESPIRAÇÃO FORÇADA


[Imagem: Sisyphus - Ticiano]


Por absoluta falta
Que escrevo
Escravo
Maxilares deslocados

Para o esvaziamento completo
Para a escassez essencial
Por latente ausência de coragem
Que escondo nas letras
Meus temores e defeitos

São pássaros de pedra
Os meus versos
Atiro-os da janela
Na esperança de que voem
Se estilhaçam

Por absoluta necessidade
Que canto
Numa das mãos a pauta
Na outra a falta
O desencanto

Que a dormência não me sirva de desculpa
E a sanidade não escore
Nessas palavras

Porque escrevo para não sucumbir
Não ser tragado pela loucura

Escrevo
Minha traqueotomia

Meio que encontrei
Para respirar

[Dos: POEMAS DO ESTOQUE]

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A FÓRMULA


[Imagem: Figure with a laurel  wreath - 
Herbert James Draper] 

Nem tão isento que não tropece
Nem tão augusto que não peque

Nem tão perene que não seque
Nem tão martelo que não cesse

Um tanto extinto
         Mas ainda lava
Um tanto escudo
         Mas ainda clava

Um tanto exílio
         Mas ainda casa
Um tanto âncora
         Mas ainda asa

Dois terços de chumbo para um de lira
Um quarto de água para três de pira

Dois quintos de mel, três quintos de ira
Metade equilíbrio, outra metade gira

Manso, manso, manso
Contudo, dente

Brando, brando, brando
Contudo, ardente

Desértico, contudo, enchente
Esgoto, contudo, afluente

Homem alto
Homem-álcool
Homem de metro e oitenta

Parte inexiste
Parte adultera
Uma terça parte, inventa

Homem-cratera
O que lhe falta melhor lhe representa.

[Dos: POEMAS (QUASE) RECÉM-NASCIDOS]

terça-feira, 21 de setembro de 2010

INDECISÃO PRECISA


[Imagem: Nude warrior with a spear - 
Tréodore Géricault]

Como um galo de cumeeira
Antes da alvorada.
Desfolha os olhos sobre a partitura nébula,
Realiza planos verticais;
Ele, homem para-raios,
Delgado, canta
Para cima e para baixo.

Como um gato de laje
Em precípua jornada.
Explora a borda à cata da paisagem,
Desfila destrezas e equilíbrios;
Ele, homem-pêndulo
Oscila. Deriva
Da altura e da profundidade.

Como um arcano de almádena
Apartado do ancestral baralho.
Acolhe a dúvida como parte do presságio.
Desatemoriza-se, telha a telha;
Ele, homem do telhado
Cimo. Indeciso.
Não sabe se pula ou voa

Deixa ao espaço
A escolha.


[Dos: POEMAS RECÉM-NASCIDOS]

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

PSIQUE E EROS – UMA LENDA ANACRÔNICA


[Imagem: Psyche opperning the golden box  -
John Willian Whaterhouse]

Um mantra para a moça que se fez silêncio
Um cântico em sânscrito para esta moça
Um silêncio branco lhe cobrindo o rosto
Um véu rendado de palavras
Invisíveis.

Um poema para a moça que fez o silêncio
Uma ode grega em sua homenagem
Uma lírica de silêncios dodecassílabos
Um soneto de estrofes
Pacificadas.

Um baile em chão batido para a moça do silêncio
Uma valsa de noivos em violinos para ela
Um par de alianças com óperas esculpidas, e que se case
Com seu silente amante tenha filhos
Que eles cantem a alma de sua mãe
Adormecida.

Um canário para a moça e seu silêncio
Um felino para o canário e o silêncio
Uma vela para que o silêncio os possa descobrir

Um miado, um farfalhar de asas, um suspiro

O felino salta
O pássaro voa
A parafina goteja

O silêncio se ajoelha
Diante de seus pés doídos
Roga por seu perdão

Não!
Responde a moça ao desnudar-se-lhe a face

Decanta-se. E cantando o abandona
[E ao encanto] 


Definitivamente.

[Dos: POEMAS (QUASE) RECÉM-NASCIDOS]

*Para Neuzza Pinheiro - a moça que fez silêncio.

domingo, 19 de setembro de 2010

O CARGUEIRO NO MAR






[Imagem: Dutch Boats in a Gale - Joseph  Mallord   W. Turner]


Segue o cargueiro no mar,
Estendendo uma tiara de brilhantes
No escuro, onde a luz afunda.
Deve haver um jovem marinheiro no convés,
Olhando a cidade acesa,
Lembrando dos olhos acesos da amada...
Deve haver um jovem marinheiro de olhos acesos,
Em chamas.

Segue o cargueiro no mar.
Deixando, por certo, um rastro invisível
De branca espuma,
Como desconsolado véu, atrás de si.
Deve haver, dentro dele, um homem fugindo,
Despedindo-se da cidade que, ao longe, também foge,
Mantendo eternos, seus eternos sobre a fuga.
Deve haver um homem cuja fuga
O aprisiona.

Segue o cargueiro no mar.
Pisando águas tranqüilas e sombrias,
Feito o fizesse na superfície de um céu sem estrelas.
Deve haver um velho, ao leme, ancorado.
Deixando atrás dos ombros uma cidade ancorada,
Içando desde seu âmago, pesada âncora.
Deve haver um velho cujos anos trataram de ancorar
Os sentimentos.

Segue o cargueiro no mar,
Como toda a vida de ondas, segue.

Só a minha angústia permanece imóvel,
Faiscando na escuridão.
Farol ardendo
Num rochedo milenar.

Pondo luz sobre naufrágios.


[Dos: POEMAS DO ESTOQUE]

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

POEMAS DO ESTOQUE


[Imagem: Modele Rouge - René Magritte]

PAISAGENS CARTESIANAS

Lixeiras tristes do cerrado
Lagartos desolados ao sol poente
Ocasos curvados sobre o chapadão
Ensaio de beleza
Entre duas estrelas.
Sem música
E sem aplausos
Escurecem os céus
Do Mato Grosso.

Canaviais eretos da Ribeirânia
Pedras negras das avenidas
Trabalhadores banhados em fuligem
Nuvens de neve acinzentada
Derramam flocos no quintal.
Ao longe se eleva a coluna de fumaça
Engolindo o firmamento.
A lua ribeirão-pretana
É uma dama acanhada
Cortejada pelos boias-frias.

Águas turvas do Capibaribe
Esgotos floridos do Beberibe
Mar de Boa Viagem
Morno de lágrimas salobras.
Dão-se as mãos as esqueléticas pontes
Da Veneza Americana
Desoladamente antigas
Como velhas rendeiras pernambucanas
Emendando em bilro
As próprias mortalhas.

Araucárias anciãs da serra virgem
Cardumes de tainhas encurraladas
Debatendo-se contra as redes de pesca.
A cerimônia de coroação começa
Quando a ilha se levanta
E sobre sua cabeça
A neblina brilha.
A rainha está pronta
Para se desnudar.

Mangueiras ancestrais de meus avós
Brejos de bagres e de meninos
Cercas de arame-farpado por toda a vida.
Andorinhas da tarde
Morcegos da noite
Galos do amanhecer
Tem asas o meu sonho
Mas a minha memória é uma taturana
Que fez casulo na infância.

Antílopes lépidos. Impalas.
Feiticeiros zulus do imaginário
Savanas em meu peito
Áridas desérticas resilientes.
Toda a vida devotada à caça
Os sentidos
Todos para a noite.
Em meu coração ardem paisagens
Pondo pólvora na fogueira das lembranças;

Levanta-se o leão faminto da saudade

Sou-lhe a única presa.



[Lixeira – Cajueiro bravo (Curatella americana; Dilleniaceae)]


quarta-feira, 15 de setembro de 2010

CRÔNICA DO DIA



[Imagem: The Magic Circle - John Willian Watherhouse]

AS VARREDORAS DE RUA

Início de tarde em Criciúma. Sou enxotado de meu banco pela onda de poeira. Algo irritado olho para trás; tento descobrir a origem da turba alérgica à minha volta.

Dou-me com duas respostas de uma vez. A razão do barulho arrastado que ouvia havia tempo e o nascedouro do poeirão. Tudo a mesma coisa; ou melhor, tudo num mesmo lugar: a extremidade de duas vassouras de guaxuma. (Aos que desconhecem guaxuma desvendo o verbete da roça. Guaxuma é uma erva-daninha da qual as senhoras roceiras se valem, em maços amarrados com arame velho, para confeccionar suas vassouras e varrer quintais. (E isso lhes rende uns trocados de economia com vassouras industrializadas). Estranho é encontrar guaxuma nas vassouras urbanas).

Nem bem a irritação se fez, instantaneamente foi. Bastou percorrer com os olhos o trajeto, desde as ramas até a ponta dos cabos. Firme neles duas varredouras de rua. Donas de meia idade, robustas, lépidas; com a pressa de um calçadão inteiro. Zapt, zapt, zapt e um monte de folhas, pontas de cigarros. Ora uma, ora outra, juntavam o produto do trabalho e o despejavam no tambor alaranjado.

Aliás, alaranjadas também eram suas calças; inimaginável combinação de roupa e adereço.

Olhei e senti a enxurrada. A maré alta da lembrança me engolindo.

Transportado 20, 30 anos para trás – pela máquina irreconciliável da memória – vi minha mãe. Um quintal que era o mundo inteiro de folhas de mangueiras, abacateiros, esterco de galinhas... E ela prestes a desbravá-lo com sua espada de guaxuma. Rosto alaranjado pelo sol, pelo pouco, por meus olhos contemplativos. Companheiros.

Corpo alaranjado, alma alaranjada. Um amanhecer constante de coragem e uma perene tarde, de cansaço e resistência.

Passaram as varredoras de rua, passou a poeira. Só não passou a imagem de minha mãe, alaranjada. Alaranjada, não! Dourada. Como uma santa ou uma feiticeira, capaz de operar milagres com sua vassoura de guaxuma.

O quintal também não passou. Está limpo e intacto; e eu ainda estou menino, imerso na nuvem vermelha. Na beleza empoeirada, secreta e pessoal, que jamais será varrida.

POEMAS DE VIAGEM


[Em  Criciúma-SC.
Imagem: Diogenes -  Jules Bastien-Lepage]

ANISTIA

Ao feio.
Encardido nos tecidos de festa
Limo na aura
Ferrugem dos estetas involuídos
Nódoa nas casas calçadas sandálias
Abandonados ao lastimável desuso

Ao vil.
Omisso debaixo das roupas
Camadas e mais camadas chegando a desaparecer
Cânone de insetos rasteiros
Par dos répteis peçonhentos
Amante dos buracos ciscos lugares sombrios
Decorados por fungos e musgo

Ao abjeto.
Suor nas axilas das putas ativas
Manchas amareladas em seus lenços rotos
Calos nos pés coxas seios murchos
Amparados por desbotadas lingeries
Seu sexo insensível
Feito o sexo de uma floresta posta às cinzas

Anistia!
Para que a beleza não se ofenda com sua presença

Anistia!
Que a moralidade não corte rua ao defrontá-lo

Anistia!
Quando o apetite lascivo fraquejar, ceder

Anistia
Ao que fede e ao que sofre
Ao que comete o pecado de resistir

Aos débeis ébrios marginais imundos alcoviteiros
Anistia!

Para que cacos continuem
Ladrilhem
Brilhem a partir do esgoto e iluminem
A face maquiada de todas as virtudes

A face excessivamente maquiada e colorida
De todas as virtudes.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

CRÔNICAS NOTURNAS


[Imagem: Sleeping Child - Bernardo Strozzi]

FOGO FÁTUO

Observar a noite dormindo é quase uma oração.

Pela completa ausência delas no céu, conto constelações na água. Estrelas verdes e vermelhas de neon. Estrelas amarelas – elétricas – espichadas nos longos rastros que o vento faz tremer quando sopra a superfície líquida. E ainda estrelas brancas, que de tão tímidas e econômicas mal chegam a refletir.

É festa! Sem música e sem gente. Festa para os olhos. Vez em quando um carro, insone, cruza longe o ombro de uma rua, com dois olhos brilhantes que parecem me notar. Mas, não. Não notam. Sei disso porque não piscam, nem me namoram com seus corações metálicos e seus sentimentos de gasolina em combustão.

A paz vai abraçando os cães que ladram n’algum quintal. Acaricia seus focinhos úmidos e beija silêncio em seus dentes; até que param. Aquietam-se.

Gostaria de ver sobre os telhados uma alma que vagasse. Desfilasse alvíssima e longilínea nas cumeeiras, como que planejando destelhar-se. Um ser etéreo que pisasse delicadamente os cabelos das casas, já crespos pelo orvalho.

... A vida é lenta de madrugada. A vida é mesmo muito lenta. Corresse pela rua assim como estou, despreocupado, eu a pegaria recostada num banco de praça. Cansada. Noctâmbula.

Faltam letras ao anúncio de bebida. Faltam letras ou falta luz? Ou serei eu que, incapaz de interpretá-lo, ponho defeitos de letras e luz?

Meu Deus, como dorme essa cidade! Como está só e plácida, e como ressona...

O céu, vazio. As ruas, vazias. O mar, vazio e solitário. Eu estou vazio. Como um grande anjo de pedra dos cemitérios, que por falta de algo melhor com o que se ocupar, assenta-se acerca de uma cova virgem e reza pelo dia.

Talvez eu seja o anjo de pedra; talvez a insônia e o silêncio. Ou, quem sabe, um cão que se desvencilhou do julgo da paz e começou a latir. Late nos quintais e dentro de mim para me manter aceso, servo da noite e das palavras. Guardião da cidade adormecida.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

POEMAS (QUASE) RECÉM-NASCIDOS


[Imagem: Auto-retrato ou homem desesperado  -
Gustave Courbet]

VAGAS SENSORIAIS

Reflexões adversas.
Compreendi que era pó
Antes de voltar ao pó;
Seria pó
Desde o começo até o término
E depois.

Esboço para ser gente
Ensaio que acabasse em canto
Rascunho que se tornasse corpo
Tentativa que desse em força
E me elevasse
Inacabado mesmo.
Obra incompleta.

Tateio enquanto gaguejo.
Titubeio no ininterpretável;
Realizo com fumaça e espelhos
Uma escultura que reflita.
Que acabe se soprada
Se quebre se atingida
Inexista, se posta à prova.
Uma escultura trêmula
De pensamentos voláteis
Palavras que não terminam.

Espaço, solo, fossas abissais.
Ao centro a poeira.
O projeto indeterminado
A sensação discreta
De não ter nome peso substância significado.
De ser por ser
De estar por estar
De não caber conter estar contido
No sopro original.

Vagas sensoriais.
“Sois o sal da terra e a luz do mundo”.
Sou só
Sal e pó

Pretérito ao sal e ao pó;
Originei-os
Antes que houvesse luz.