"PORQUE NARCISO ACHA FEIO O QUE NÃO É ESPELHO" (Caetano Veloso).

quinta-feira, 16 de julho de 2009

CRÔNICA DO DIA.


URDIDURA

Fez uma mala. Não propriamente mala. Uma sacola de couro. Bem vistosa ficou – exótica -, porém o importante não era o resultado estético ao final, mas o processo, o desejo e a descoberta de que era possível.

Primeiro mediu com esmero, planejou cada ínfimo detalhe, depois cortou sobre os traços de caneta, pontilhou carreirinhas de pingos onde deveria perfurar e, por último, foi unindo os pedaços com cola, agulha e cordão. Reflexão para dois ou três dias inteiros; dedos furados, alma vazando.

Enquanto urdia - trançava linhas em tramas delicadas - pensava que mesmo as tarefas puramente mecânicas têm significado e se assemelham grandemente à vida. (Queria aprender, penetrar em tais significados).

Descobriu que viver é um eterno exercício de medir, emendar, colar e costurar. Medem-se as palavras, o dinheiro do mês, os dias para o fim-de-semana... Emendam-se vidas, desejos, alegrias, destinos. Colam-se os sonhos quebrados, a memória se cola ao passado e a esperança ao futuro. E tudo o que está para além da mão, costura-se bem apertado de forma que as partes se aproximem e se torne mais fácil de alcançar.

Ao cabo, a peça pronta o fez enxergar que tudo que fizera fora tramado para enganar o tempo. Para evitar que sua fome viesse a lhe devorar.

Uma tarefa qualquer esconde em seu íntimo o verdadeiro sentido de existir: dominar o destino, governá-lo, para que ele não nos desgoverne.

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