"PORQUE NARCISO ACHA FEIO O QUE NÃO É ESPELHO" (Caetano Veloso).

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

CRÔNICA DO DIA.


A LIÇÃO DO ESTILINGUE

Recorro ao passado sempre que preciso encontrar caminhos. Embora saiba que nada do que nele está escrito possa ser alterado, folheio-o feito o fizesse ao livro dos segredos. (Não que tente encontrar algum segredo, mesmo porque todos os versos que desfilam por suas linhas são meus velhos conhecidos).

E o passado me acode. Tem alguma sabedoria e uma estranha forma de se entregar. Muitas vezes não revela de imediato a página procurada e, outras, tenta ainda ocultá-la. Porém, no fim das contas se dá, se rende, abre as pernas, sua alma para mim...Trocamos sopapos, carícias, depois repousamos, um para cada lado, sem nos olhar nos olhos.

Essa nossa estranha ligação demorou para fazer sentido...

Se me orgulho de alguma coisa (e não tenho o hábito da soberba) é de não me deixar amarrar por saudosismos, tampouco pela felicidade ou pelos revezes vividos. Contudo, quando o namoro com o passado revelou suas razões compreendi que não havia como recuar.

Apesar de ser um homem casado com o presente, um otimista de carreira e um lascivo amante dos dias futuros, o passado é minha única posse. Meu livreiro, minha bibliotecária, a governanta, o mordomo de meu domínio interior. É ele que se incumbe de pôr ordem no que presta, queimar o que deve ser esquecido e de resgatar do entulho o que precisa ser lembrado.

Assim o fez com a página mais recente que me abriu. Antiga. Desdobrou-a de onde estava para me mostrar. Tinha eu por volta de sete anos e, como todos os guris das bandas da 13 linha, vez ou outra me metia em caçadas de passarinho (se bem que não se pode chamar aquilo de caçada, porque 99,99 (dízima periódica) % das vezes dava em nada), passando tardes e mais tardes a espreita de qualquer bicho que voasse para, ao fim da tocaia, tornar de mãos vazias.

Mas um dia foi diferente. Espreitando embaixo do abacateiro vi pousarem dois pássaros de plumagem castanha. Felizes de fazer gosto. Mirei entre eles e mandei bala (no caso, bola, de gude); por sorte (?) o tiro foi fatal, derrubando um. Corri feito desatinado – sabujo dos bons – alcançar a caça que ainda se debatia. Tempo de vê-la suspirar...

Não dá para mentir, foi quase um gozo, quase uma bola de futebol nova, quase uma nota máxima no boletim. Estava em êxtase com meu primeiro passarinho morto...

Dia seguinte, ainda animado, voltei ao abacateiro. O outro pássaro estava por lá, repicando entre os galhos como quem procurasse o que não sabia. Quando voou mais para o alto entendi do que se tratava. Assentado ao lado da barroca, da casa cujas paredes estavam pelo meio, a ave esperava pelo barro, pelo companheiro que não voltaria.

Aposentei precocemente meu estilingue.

O passado me trouxe essa lauda empoeirada e muito amarela. Eis o motivo de meu desvelo para com o esse tempo: sua generosa compreensão de minhas necessidades.

Veio me lembrar que - assim como os passarinhos que vivem pelo alimento do dia - o meu amor e a história de barro, gravetos, sonhos e cumplicidade que temos construído ao longo dos anos, são as verdadeiras razões para que eu viva o hoje e espere pacientemente o nascer da próxima manhã (uma de cada vez, até que Deus - menino caçador - resolva me estilingar).

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