"PORQUE NARCISO ACHA FEIO O QUE NÃO É ESPELHO" (Caetano Veloso).

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

CRÔNICA DO DIA


PEIXE PEQUENO

Hoje meu pai me perguntou se todos os peixes do mar são salgados como a sardinha.

Falávamos ao telefone, descontraídos e distantes; eu olhando a lua estendida na vastidão de água, e ele, por sua vez, preocupado com possíveis tempestades. Eu dizendo das poucas pessoas que caminhavam pela praia naquele momento e ele me narrando o calor infernal que lhe cozinhara o dia.

Disse-lhe que por aqui não faz calor, que venta muito e as janelas precisam ficar fechadas, assim como as portas, assim como o peito. Caso contrário caem os vasos, rasgam-se as cortinas e a saudade escapa, toma conta de tudo. (A frase não foi isso tudo, mas teve esse significado em minhas entrelinhas).

Do outro lado ele sorria, profundamente admirado com as viagens que fiz e, certamente, com as grandes distâncias que separam o sítio - a cidadezinha parada no tempo - do vasto mundo que me atribui. Orgulho silencioso de quem tem um filho que deixou de ser menino e assumiu os riscos de ir além (ou aquém).

(Verdade é que o tempo nos distancia do início sem, contudo, oferecer instrumento para aferir evoluções ou desvios de rota. Razão pela qual é difícil dizer se o homem piorou o menino ou se o menino melhorou o homem... Vencido pela dúvida, melhor mesmo foi não contraditar o silêncio admirado de meu pai).

Foi assim, meio sem nada, meio sem jeito, a ligação ruim e a distância pondo ruído em nosso assunto - entre uma pausa e outra - que ele me perguntou se todos os peixes do mar são salgados feito a sardinha.

E eu, corriqueiramente e sem dar volume ao fato respondi que não. Ele se corrigiu, algo envergonhado. (Lembrou-se das sardinhas frescas que comprava; elas não eram salgadas). Riu constrangido e seguiu adiante, como sempre faz.

Pensei imediatamente na quantidade de coisas que ele me ensinou ao longo da vida... É, pai, você não viu metade do que eu vi, e eu não sei um décimo do que você sabe.

Façamos o seguinte: quando eu chegar à sua idade, com filhos criados, netos e uma família da qual me orgulhar a gente volta a falar de peixe. Até lá, se importe com isso não...

(No final das contas o mar é salgado e grande. Como o tempo, a distância e a saudade. O resto é peixe pequeno)...

2 comentários:

Neuzza Pinheiro disse...

Agnaldo

fico feliz por ter chorado esta manhã lendo seu texto, tanta beleza, essa crônica
embebida num amor contido, amor
tão grande pelo seu pai.
Meu pai nunca viu o mar. E se foi sem vê-lo.
Mas ele tocava ao violão Abismo de Rosas, como ninguém. Era um grande músico. Se fosse possível que ele voltasse, eu o veria bem mais, ouviria bem mais os solos de violão
e diria o quanto ele era importante pra mim. um beijo

Neuzza Pinheiro disse...

quem sabe seja preciso abrir o peito mesmo que caiam os vasos e se rasguem as cortinas