"PORQUE NARCISO ACHA FEIO O QUE NÃO É ESPELHO" (Caetano Veloso).

terça-feira, 22 de junho de 2010

POEMAS RECÉM-NASCIDOS


ATRAVÉS DO ESPELHO

Toca a minha mão. Vem!
Que hora é essa em que a tua face pálida
Me ausculta o mínimo pensamento
E até mesmo o silêncio me consegue ouvir?
Ah, pois então, se é a tua, a minha voz,
E se nossa, em uníssono, se vai morrendo devagar
Antes mesmo de ser gutural,
De escapar-se pela goela e dela fugir.
Pois então, se é assim,
Toca, e apenas toca, a minha mão.
Vem!

De onde me conheces, pergunto, de onde?
Que tanto sabe e, por isso, tanto bem me olhas
Cavando o máximo de escondido que há em mim?
Há rugas em meu cenho, e sei, e sei que há
E sei que outras hão de vir, marcar-me a ferro e a tempo,
Tornar-me escravo delas pelo resto de meus dias.
E tu me olhas, e tão somente, e me olhas muito,
Conhecendo-me melhor que quem me tenha concebido.
E eu pergunto, e torno a fazê-lo:
De onde me conheces?

É tarde, sim, o sei. Concordas?
Tarde para tudo e cedo para quase nada. Nunca.
Se ao menos teu olhar te resgatasse de meus olhos
E o levasse para distante, para o ignorado,
E me deixasse por aqui, diante da prata lisa e sem imagem,
Se ao menos isso... Fosses apartado de minha pele,
Desatado de minha carne,
Afastado de minha alma pelo tempo necessário ao descanso.
Mas já é tarde e, sim, o sei. Concordas?

Vai-te de uma vez, te imploro, vai!
Deixa descansarem os meus nervos tenros,
E sobremaneira, deixa que se dobrem os meus joelhos,
E mais, e mais, deixa que se extenuem as minhas lamentações
Até deixarem de ser.
Pois tens diante de ti um outro homem,
Um homem sem reservas e sem poderio algum.
Espólio de si mesmo, imensurável, urgente e agudo.
Incapaz de compreender a tua presença,
De desvendar o teu gesto mais sutil,
De encarar-te com a coragem que mereces.
Vai-te, é o que te ordeno. Vai-te de uma vez. Vai!

Ignoras, por certo. Ou talvez?
Vês-me aqui, como estou, de pé e fragilizado?
Ou tens, talvez, outra consciência, que não esta,
De que cá estou, completamente fragilizado?
Não sabes. E não sabendo tem pouco que me dizer.
Pouco. Por isso, esse escasso, de nada serves.
Só a minha mão conseguirá atravessar tua cortina de vidro
E te libertar. Só a minha mão sangrando contra os cacos.
Mas eu te deixarei aprisionado. Ignorar-te-ei,
Porque sou um outro homem para além de ti.
Homem áspero demais. Demais até.
Incapaz de suportar a doentia intensidade,
O brilho e a crueza insana do próprio reflexo.
E isso é o que ignoras, por certo.
Ou talvez...

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