"PORQUE NARCISO ACHA FEIO O QUE NÃO É ESPELHO" (Caetano Veloso).

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

BORBOLETAS SINTÉTICAS



[Imagem: Le fou de peur - Gustave Courbet
Vídeo: Mariposa Tecknicolor - Fito Paez]

Abri mão de minha voz,
Para não gritar.
E as mãos,
Para que intentassem asas
As borboletas sintéticas
Que inventei.

Se gritasse
Despertaria as pedras, os túmulos,
Chacoalharia a base dos viadutos;
E as barricadas de pneus incendiados
Lacrimejariam sinfonias
De fumaça tóxica,
Adoentando o céu.

Se gritasse agora
Assustaria os cães de guarda
Que recuariam aos porões das casas.
E os aviões mais aprumados para o alto
Tremeriam turbulências minhas.

As ondas de rádio,
Os sinais de satélite,
As preces dos monges tibetanos,
Os ventos sul e norte
Seriam interrompidos
Pelo arco elétrico assoberbado,
Difuso e dolorido.
O meu grunhido.
E as borboletas sintéticas, amputadas.

Abdiquei da fala
Porque já estava corrompida
E lacrei em autocasamatas
A devastação atômica
Que me produz.

Dizer.
Para que serve,
Quando o que cabe na boca é tão estridente
Que nem os ouvidos do emitente é capaz de suportar?
Implodiria os tímpanos.

E as borboletas sintéticas permaneceriam imóveis.

[Dos: POEMAS (QUASE) RECÉM-NASCIDOS]

7 comentários:

Anônimo disse...

Podes até abdicar da fala, mas que sua escrita continue assim, docemente gritante. =)

Beijo terno.

Eliane Furtado disse...

A gente abre mão de tanta coisa...
Mas não devemos.
bj com fé.

Neuzza Pinheiro disse...

lacrimejar sinfonias de fumaça tóxica
adoentando o céu...
Essa metáfora do céu agonizante é dolorosa, Agnaldo.
Vejo um céu acamado, pálido, ofegante, pedindo o azul que se perdeu...
E Fito Paez...a poesia de Fito Paez...Quando ouço un vestido y un amor, com Caetano, nunca deixo de lacrimejar e até adoeço às vezes
muito afeto

Neuzza Pinheiro disse...

a sua voz jamais estará ausente
ela vibra em cada verso-borboleta inventado. E um verso-borboleta, mesmo que amputado, se recria a si mesmo

AGNALDO NO ESPELHO disse...

Lara,

O que dizer? Na falta de melhor resposta contento-me com um obrigado!

Super beijo.

AGNALDO NO ESPELHO disse...

Eliane,

Trocamos uma coisa por outra, embora não devêssemos. Vivemos fazendo trocas e, em nome do bem maior (ou do mal menor), abdicamos de outras coisas...

Mas vamos levando... Com fé, claro.

Super beijo.

AGNALDO NO ESPELHO disse...

Neuzza querida,

As borboletas sintéticas sempre voam, porque foram inventadas para isso. Para libertarem ao alto céu alguma esperança.

E desde que ouvi essa versão ao piano de mariposa tecknicolor fiquei alucinado, em completo estado de urgência, como se a projeção de suas asas sobre minha vida tivesse despertado algum mal secreto... Ele canta apaixonadamente e a música é linda como quase "todas las mañanas que vivi"...

Super beijo.