"PORQUE NARCISO ACHA FEIO O QUE NÃO É ESPELHO" (Caetano Veloso).

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

POEMAS RECÉM-NASCIDOS


O DICIONÁRIO DA FUGA

Fugi para a tundra
Ver a noite se erguer.

Meu pai içou-me pelos pés
Quando nasci
E disse: ei-lo!
Antes de atirar-me aos lobos.
E eu, coberto ainda
Pelas vestes rubras do nascimento
Reinei sobre eles com manto cor de rubis.

Fugi para a mata
Ouvir o vento gemer.

Árvores centenárias
Cobriram de pólen
Os meus poros
E eu frutifiquei.
Raízes nasceram-me nos cabelos,
Foram aos céus
Fustigar as nuvens,
Fazê-las salivarem
Sobre meus cachos
Baobás.

Fugi para a caverna
Beber com a escuridão.

Assentei-me ao seu lado;
Curvamo-nos na direção do charco,
Sorvermos.
Depois rimos, murmuramos confissões.
Olhos correspondidos – idênticos –
Éramos siameses.
E morcegos avoaram, festivos.
Trouxeram-nos frutos e sementes.
Guano.
Crescemos emendados.

Fugi para o deserto
Encantar escorpiões.

Meus companheiros
Ao se depararem com minhas pegadas
Gritaram: ei-lo!
Depois voltaram suas caravanas
Na direção oposta.
E eu, cuja sede
Sugava dos músculos a derradeira gota
Dei de beber às serpentes e à areia.
Urinando sobre elas
Demarquei minhas fronteiras.

Fugi para a montanha
Assistir ao sol se rebelar.

Seu primeiro raio
O aparei com olhos bem abertos.
Escoltas de açores
Renderam-lhe homenagens.
Abelhas lhe coroaram a fronte dourada
E eu, pacificamente sentado,
Enfrentei-o.
Esperei que ele me cremasse.

Fugi para o mar
Tornar-me veleiro.

O bom Deus dos náufragos
Deu-me à tempestade e aos raios.
Não antes de experimentar as minhas fibras
Bradou: ei-lo!
Conjurou sobre mim sua melhor tormenta
Quando eu, ainda moço,
Esboçava madeira em meu fino casco.
E eu domei as intempéries.
Tornei-me o capitão
A vela e a âncora.
Navio fálico nos lábios do oceano.
Plácido. Teso. Preservado.


Um homem inteiro.


6 comentários:

Eliane Furtado disse...

Olá bom dia. Já escreveu livro de poemas? Caso não tenha escrito, comece a pensar.
Fiquei muito feliz com sua visita hoje também.
Como vc sabe ficarei ausente uns dias. Poucos. Mas voltarei e espero encontrar aqui um poema de amor. Daqueles!kskskksksksk

AGNALDO NO ESPELHO disse...

Eliane,

Vamos aos poemas de amor.

Já existem alguns publicados, como, por exemplo: "Os olhos do meu amor".

Mas vou procurar algum em sua homenagem. (E olha que tem muitos).

Quanto ao livro, ando ensaiando isso há muito tempo.

O blog é um remédio para a insegurança. É para dar a cara a bater e ver o que as pessoas acham.

Sou da religião da "insegurança universal da raça humana", talvez por isso nunca tenha posto à prova meus mais de 5 livros prontos.

Bom, um dia hei de postar por aqui um poema chamado "Um crime delicado" e você vai entender... e, claro, por favor, COMENTAR.

Beijo grande.

Estou na torcida!

Aliás, relaxa! Vai acontecer e vai ser bom! O resto você administra, afinal de contas já é uma expert nisso.

Outro beijo.

Neuzza Pinheiro disse...

à toda, Agnaldo, correndo feito cristal líquido nesses versos
que vão quebrando espelhos.
Salve, poeta!

Anônimo disse...

Fiquei prenhe de mar... lindo!

Beijo.

AGNALDO NO ESPELHO disse...

Lara,

Bem-vinda ao espelho.

O mar realmente tem esse poder, engravidar-nos.

Às vezes a gravidez é leve como a espuma, outras, densa como o mais profundo de suas águas.

Sinta-se em casa. Olhe no espelho quando quiser; portas e janelas abertas.

Super beijo.

AGNALDO NO ESPELHO disse...

Neuzza querida,

Os versos servem para isso mesmo. Para quebrar vidros, estilhaçar espelhos. Deixar pelo chão os cacos,
para serem juntados com as mãos.

Super beijo.